Havia ao norte de Pão de Açúcar,
pitoresca cidadezinha alagoana à margem do São Francisco, e distante doze
quilômetros da mesma cidade, lugarejo aprazível denominado Meirús, com as suas
palhoças, tijupás, choupanas, casas de barro, pau-a-pique; umas cobertas com
telhado de colmo, outras, com telhado de telha vã.
Nesse lugarejo aparecera velho
religioso, Frei José de São Jerônymo, que ali se sentira bem, muito feliz, pois
gozavam os olhos em rever todo o dia aquele delicioso pedaço de terra
brasileira, recanto abençoado das Alagoas, que lhe lembrava um painel antigo,
presépio encantador.
Com o auxílio dos habitantes dali, dos
das suas cercanias, revolveu erigir lá uma capela, onde dizia as missas, e
pregava ao modesto e meigo rebanho, cujas almas cândidas, como brancas pombas,
feitas de piedade e de fé, criam piamente na lealdade, no saber do bom
velhinho, criam ardorosamente nas verdades da religião.
Morou frei José ainda muitos anos no
referido lugarejo, ao qual batizara de Campo Alegre, que hoje é povoação, tendo
já, como base de progresso industrial, grande máquina de extrair a semente da
penugem algodoeira, ou, como se diz vulgarmente, de descaroçar algodão.
Um dia, nos Meirús, entrara Zé Cururu,
inesperadamente, na venda de Manoel Pedro Paulo, mais conhecido por seu Chico
da venda, quando estava o sol quase no ocaso.
Palestravam ali alguns desocupados; a
presença do bandido cortou o fio da palestra. Seguiu-se, em longo intervalo,
profundo silêncio.
Ele que, apesar de sexagenário, tinha a
cabeleira apenas grisalha, era o mesmo homem de sempre: vigoroso, forte, com a
severidade no olhar e o hábito antigo de pouco encarar as pessoas com quem
falava.
Ao entrar na casa do seu Chico da venda,
havia saudado laconicamente os circunstantes com um “ora, vivam, meus
senhores!” e a que lhes corresponderam todos com “Deus lhe dê boas tardes!”.
Para romper o silêncio, sem ter assunto,
dirigiu-se Manoel Pedro Paulo ao recém-chegado:
- Não sei por que, tive pressentimento de
que o senhor estava no povoado.
- Como?
- Ah! É esse meu dedo que adivinha!
Em seguida, fechou a mão, e, esticando
os dedos, um por um, disse, por fazer espírito:
- Dedo mindinho, o seu vizinho, o pai de
todos, fura bolo, mata piolho. Adivinham todos eles até quando vai chover.
- Porém, foi o mindinho que adivinhou a
minha vinda! Está bem...
- Então, como lhe trata essa gente por
aí afora, ou por outra, como trata o senhor os filhos da Candinha?! Anda tudo
debaixo do cutelo, não?!
Zé Cururu era indivíduo de poucas
palavras; porém, quando lhe falava alguém das suas façanhas, ficava facilmente
comunicativo. O vendeiro assaz conhecia o fraco dele.
- Ora, seu Chico! Já não sou quem dantes
era!
- Noto que o senhor é a mesmíssima
pessoa de todos os tempos: está bem disposto, não envelhece... E, lá isto é
verdade, sempre foi muito valente!
Envaidecido, o facínora, que nunca
sorria, o lábio superior encrespara-se a tremer, quando ensaiara sorriso, tal
como o cão que rosna.
Velho criminalista, num só gesto, no
próprio sorriso de um Zé Cururu, descobriria a tara do indivíduo propenso ao
mal... do criminoso nato!
- Não me considero valente, sim doido;
porque quem faz o que ainda faço, não tem juízo perfeito. Para verem vocês se
sou doido ou não, basta contar-lhes o caso seguinte:
Tinha eu bela rapariga em casa de uma
tia velha perto de Santana. Estávamos combinado, já com tudo pronto, a fim de
seguirmos para a minha casa, no Sertão de Pernambuco. Conversava com a
rapariga, quanto certa vez entrou apressadamente a tia, e avisou-me: “Fuja, seu
Zé, que vi um horror de soldados ali, na ribanceira; Prá mim, andam a vê se
descobrem aqui a casa, prá darem o cerco!”
Os homens estavam acampados a meia
légua. Nunca tinha tido eu soldados tão perto de casa!
Como nada faltasse para empreendermos a
viagem, ajudei a aparelhar os cavalos; e, em vez de ir-me embora sossegado,
mandei a rapariga com a tia velha – “vão indo, que me vou encontrar já com
vocês”;
Que fiz?... Uma taioca foi mexer com um
enxú!
Conduzi, de mansinho, o cavalo pelo
cabresto, deixei-o amarrado no tronco da aroeira, no mato fechado; saí, pé ante
pé, e grande foi o meu espanto, quando me encontrei cara a cara com o alferes
comandante da força! Vinha este, também, pé ante pé, a ver se bispava alguma
coisa, e quase desmaiou quando deu comigo!
Fiquei na frente do homem por espaço de
vinte segundos, olhando firme para ele. Como nada me dissesse, puxei da faca e
degolei-o com menos dificuldade do que o faria a um porco; porque este ao menos
arrelia, grunhe, faz barulhos dos seiscentos mil diabos. Oh! Nunca vi bicho tão
de ânimo tão fraco do que esse tal alferes!
Mal acabava de fazer esse serviço, eis
que surgem dois soldados que mais atrás vinham acompanhando o Alferes. Ai fui
mais ligeiro: com disparo de bacamarte fim um deles aninhar ali mesmo. Quis o
outro dar volta, enleou os pés nos cipós, caiu de borco – dei-lhe com a coronha
na cabeça, e enviei-lhe a faca no cachaço, que foi sair no gogó!
Logo percebi que o resto da tropa havia
de se assuntar, ouvindo o ronco da boca do sino. Dei imediatamente volta para a
aroeira, onde o rosilho estava amarrado. Suspendi com o a pistola de dois canos
que trazia o alferes e a respectiva munição, que tinha o oficial na bolsa de
couro, presa no cinturão. Segurei a carabina que trazia um dos soldados e todas
as balas que vinham nas cartucheiras.
A tropa ficou assustada, porque
conheceu, pelo estrondo, que o disparo não era de carabina, nem de pistola.
Achei era a ocasião de confundir o pessoal que, porventura, tivesse internado
no mato; e carreguei o bacamarte que, pela segunda vez, trovejou muito mais
forte, muito mais pavoroso que o bramido de velha onça faminta!
Montei no rosilho, que estava fogoso
como nunca, dei grande volta pela lomba e fui, depois de algum trabalho,
descobrir a Força numa baixada, já com o corpo do alferes e dos dois soldados!
Pareciam estar indecisos sobre o que
haviam de fazer. Com a própria carabina, derrubei um inferior. O pessoal perdeu
o tino, e disparou por toda a parte. Fui matando soldados, enquanto não os perdia
de vista”.
- Pelo que vejo o Senhor não erra
pontaria! – admirou-se Manoel Pedro Paulo.
- Pois então! Na minha vida, desde que
fiz de mim celerado, consagro todo o tempo que posso em assestar a espingarda
na direção de qualquer alvo, porque entendo assim: uma vez que o indivíduo
escolhe certa profissão, seja boa ou má, deve aperfeiçoar-se na especialidade! A
minha especialidade era assassinar; logo, tinha eu estrita obrigação de saber
manejar a faca com perícia, e de não errar o alvo! Este era sempre qualquer
homem que passava na estrada, quando calculava ser indivíduo desclassificado.
Entendo tanto ter direito de viver o
beija-flor inofensivo, como o indivíduo desclassificado, ou ainda outro
qualquer; pois desde que Deus castigou o gênero humano com o mau sentimento da
inveja, o homem ficou sendo o pior animal do mundo!
- O senhor há de ter muitas mortes nas
costas! – disse o vendeiro.
- Penso que nenhum bandido do Brasil
terá maior número de mortes do que eu.
- Não exagero, não! Estou com mais de
sessenta anos nos costados e, desde a idade de dezesseis anos, a minha vida tem
sido de exercícios, a fazer pontaria... não lhes digo nada: nunca alvejei
passarinhos...
Chegara, então, um rapazola analfabeto,
de dezoito anos, quase banguela, cor de ocra, o tipo perfeito da indolência,
com o abdome muito volumoso, maltrapilho, pés descalços, e o qual, há muito
tempo, conhecia de nome o célebre Zé Cururu, grande bandido, de cujas façanhas
falavam todos. O recém-chegado, que descascava um pedaço de aipim cru, com
ordinária faquinha de ponta, do qual arrancava lascas com os caninos
esverdeados para as engolir – dirigiu-se ao vendeiro sem ter saudado os
presentes.
- Seu Chico, quero dez réis de vinagre e
dez réis de azeite doce nesta garrafa; quero dois vintém de gás neste fuxiqueiro.
Interrompeu o Zé Cururu:
- Antes de atender a esse amarelo, dê-me
cachaça.
O vendeiro encheu o copo de aguardente
de cana, entregou ao bandido, e este dirigiu-se ao rapaz:
- Como se chama você?
- E eu sei?!
- Então você não sabe como se chama?!
- A canaia é que me chama de Veado, mais poréns o meu nome mesmo é
Dorvalino.
- Que povo burro é esse, que alcunha de
veado a quem só tem gestos de preguiça?!
Do ditério não gostou Dorvalino, mas nem
olhou para quem estava a falar-lhe.
- É... Estou aqui quéto, e não sei que tem você de mexê com quem tá quéto...
Aflitos, procuraram todos, por meio de sinais,
avisar a Dorvalino que se calasse, pois logo compreenderam o rapaz não sabia
com quem tratava. O facínora, porém, fora indulgente.
- Está bem, disse; para sermos amigos,
você, seu amarelo, vai chamar ao peito
um trago dessa água que passarinho não bebe! Não lhe apaixona um trago de
canguara?
- Eu não bebo, não!
- Não gosta de esquentar o peito!?
- Lá que uma vez ou outra, mais poréns não estou disposto...
- Então é por desaforo... é por ter eu
gracejado com você, seu amarelo malcriado?
- Ora, pur amô de Deus! Seja lá pru qui você quizé! – respondeu muito
agastado.
Era quase noite.
- Deixe de pabulagem, seu papamacaxêra,
vociferou Zé Cururu que, ao mesmo tempo, ergueu o braço e deu um empuxão em
Dorvalino.
Este, na mesma ocasião em que Cururu o
arrastara para si, enterrou instintivamente toda a lâmina da faquinha na mama
esquerda do facínora, que caiu fulminado. E retorquiu com cólera:
- Pabo é você, seu fio d’ua égua!
Morto o bandido, os circunstantes
dispersaram-se horrorizados. Ficou apenas Dorvalino com Manoel Pedro Paulo.
- Inháfute! E, sentenciosamente, muito
nervoso, disse o vendeiro: esse e o fim de todo valentão!
- O sinhô viu, seu Chico, o que este peste
fez comigo?! .. Nunca pensei, na minha vida, de matá um home, mais poréns,
nestas condição, não me arrependo!
Entrego ao sinhô a faca e não fujo. Estou preso.
- Sabes a quem mataste, Veado?
- Nem quero sabê, seu Chico, quem é esse desgraçado. Sei que me azucrinou a
paciência, me xingou, quis me dá, e
eu não podia fazê outra coisa... O sinhô é testemunha...
- Não sabes de que livraste o mundo!?
...
- Como, seu Chico?!
- Pois mataste Zé Cururu, homem de Deus!
- Não diga, seu Chico! ... Murmurou,
acentuando demoradamente a tônica do verbo.
E o rapaz começou a tremer, como vara verde, e caiu-lhe a caxerenga
da mão.
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Extraído da revista Fon-Fon, Ano XVII. Nº
9, Rio de Janeiro, 3 de março de 1923, p. 3.
Poeta,
romancista e ensaísta, HORMINO ALVES LYRA nasceu em Pão de Açúcar, Alagoas, em
3 de agosto de 1877. Era irmão do ex-Prefeito Manoel Alves Lyra. Fez seus estudos secundários no Ginásio São João em
Penedo, onde exerceu as funções de censor e lecionou como substituto de várias
cadeiras.
Em princípio, pensou dedicar-se à vida eclesiástica.
Entretanto, não obstante a sua crença religiosa, percebeu que não tinha vocação
para o sacerdócio. Prestou, então, concurso para a Fazenda e para os Correios e
Telégrafos. Aprovado em ambos, preferiu o segundo, sendo admitido como
Telegrafista.
Escreveu para vários jornais e revista como O Malho e
Revista da Semana.
Suas principais obras são: Dona Ede(romance), em 1913;
O 14 (contos), também em 1913; O Barão do Triunfo, 1941, separada da Imprensa
Nacional (memória); Crisol (poesia), 1960. Troveiro, 1960 (poesia).
Foi casado, em primeiras núpcias, com Alayde Vaz Ribeiro (filha de João Vaz Ribeiro e Ana Braga Ribeiro) e, em segundas núpcias, com Marieta de Mello Carvalho (filha do
Coronel Augusto Álvaro de Carvalho e de D. Maria Luiza de Mello Carvalho),
falecida em 5 de janeiro de 1961. Hormino Lyra faleceu no rio de Janeiro em 13 de
setembro de 1970.