Eudes
de Carvalho[i]
Em
pleno verão, o viajante ao descer de automóvel a serra de Paulo Afonso para
Marechal Floriano[ii],
tem a impressão que vai aos poucos se aproximando da boca de uma fornalha. O
declive quase brusco da estrada, contornando os serrotes, esmaga
topograficamente a antiga vila de Piranhas; o ar rarefeito na depressão e a
radiação calorífica provocada pela massa parda líquida do São Francisco,
serpenteando lá no fundo da garganta, dão um conjunto climático esgotante e
verdadeiramente insuportável ao forasteiro que veio tolerando razoavelmente o
calor do vale do Ipanema e dos carrascos empedrados da caatinga alagoana.
Piranhas |
O
vapor da linha de Penedo, as bases e canoas trafegam rio abaixo, fazendo o
comércio que os caminhões mantêm no centro nordestino. Ferreiros, viajantes,
famílias, abarrotam essas conduções da estrada líquida, com bolsas, jacás,
engradados e sacos de cereais.
A
bordo do vapor as refeições são estritamente sertanejas: café pela manhã, com
pão de Penedo e bolachas; almoço e jantar à carne assada, farofa e arroz.
Passageiros
jogam baralho, discutem política ou ficam absorvidos com a paisagem. Crianças
de ventre dilatado e pernas finas choramingam pelos bancos. Ouve-se contar a
história do furo do cano que conduz água da cachoeira a Delmiro, por um esperto
fazendeiro no Caldeirão, dando sangue novo e enriquecendo uma terra seca
demais, para estar tão próximo de Paulo Afonso.
E
o vapor desce em linhas sinuosas acompanhando os canais abertos pela cheia.
Deixando-se distante Marechal Floriano, atravessa-se um verdadeiro paredão de
serras, no meio de águas remansosas e profundas, onde cardumes de piranhas
vorazes espreitam o boi na bebida, a fim de abocanhar-lhe a cauda ou os beiços.
Entremontes. Foto: CPDOC/FGV |
Entremontes,
Belém e outras pequenas vilas apertadas entre os serrotes, vão se destacando
nas margens do rio, com seu casario branco.
De
vida pobre, agricultura resumida e rotineira, nada há de se observar. Algumas
canoas pedem parada ao vapor para embarcar famílias, grades de galinhas e ovos.
Nos
pequenos recantos de praia, nas reentrâncias das margens, aparecem canais de
irrigação e verdes hastes de arroz, cultivados em espaços tão limitados que
mais se assemelham a pequenas hortas. Surgem alagados com pujantes capinzais;
mangueiras esparsas, batata-doce, jerimum e pequenos roçados.
A
água doce, que passa quase na porta de casa, vai para a bilha e o feijão; dá o
banho, e leva a canoa fina como uma piroga à pesca farta, ou em viagem aos
povoados próximos.
Quando
a cheia começa a ceder terreno, vê-se as terras baixas se acobertarem de limo e
detritos vegetais de toda a espécie, que desceram no arrojo da inundação. Então
as ilhotas parecem recantos ubérrimos e encantadores, na sua apresentação
verde-garrafa.
A
enxurrada que desagrega a terra, diminuindo seu tamanho rio abaixo, em
compensação aumenta-se rio acima, com o acúmulo da areia, barros, ramagens em
montões desordenados, dando a impressão muito conhecida de que “as ilhas sobrem
o rio”. Nelas, grande número de aves e animais de pequeno porte se abrigam e
proliferam, constituindo excelentes regiões de caça.
Pão de Açúcar, 1946. Foto: João Lisboa |
Contam
que um forasteiro chegou à terra colocou seu cronometro no fundo de uma mala,
cheia de roupas, enrolando-o cuidadosamente em um lenço. No dia seguinte
retirou-o, encontrando-o parado. Levando ao relojoeiro, foi-lhe informado que a
maquinaria estava obstruída pela poeira, fato absolutamente trivial na
cidade....
Naturalmente
este episódio está fortemente dosado; porém, de algum modo, dá ideia do que
seja a poeira de Pão de Açúcar.
Propriá, Sergipe, a próspera cidade sergipana. |
Barcas
passam acima e abaixo de panos enfunados. Despontam ilhas isoladas no rio
cheio, além de Traipu. Entre Porto Real do Colégio e Propriá, o tráfego é
intenso e sobre as águas ao longe, como pequenas manchas brancas, apontam
várias embarcações a vela.
Barca no porto de Penedo-AL. Foto: CPDOC;FGV |
Penedo,
velha capital do Baixo São Francisco e antigo empório do interior alagoano, está
cedendo muito terreno a Propriá, sendo fato sintomático que o mercado varejista
penedense muito se abastece hoje na próspera cidade sergipana, dotada de
inúmeros estabelecimentos comerciais, públicos e bancários, além de belos
conjuntos residenciais.
Aproximando-se
o rio da foz, as ilhas aumentam de tamanho e número, e a areia invade a grosso,
os canais de navegação.
Em
Piaçabuçu ele sobre uma ligeira contração na sua já enorme largura, e aí
termina o curso fluvial das barcas de cabotagem.
Aspecto típico de uma feira de cerâmica na Zona do São Francisco (Penedo) |
Deixa
então, o São Francisco, de ser um meio de gravitação da Região. Avançam, entretanto,
pelo Pontal da Barra, para Maceió ou Recife, Aracaju ou Salvador os pesados
barcos de grandes velas, abarrotados de carga, produtos vários da economia
local: tecidos, cerâmica, cestas, peixes secos, etc., prolongando mar afora a
rota comercial iniciada na velha e ladeirosa Marechal Floriano.
Um porto de canoa usado no transporte de carga no Baixo São Francisco. |
***
Transcrito
da revista Lavoura e Criação, Recife, PE, Ano I, Nºs 3 e 4, Vol II,
Setembro/Outubro de 1946. Trata-se de relado de viagem realizada pelo meteorologista
Eudes de Carvalho, do Serviço de Meteorologia do Recife, em março de 1946 em objeto
de serviço.[iii]
Eudes Patrício de Carvalho, Engenheiro Agrônomo e Meteorologista. Foi Chefe do Observatório Meteorológico de Olinda. Foi Diretor Técnico da Federação das Associações Rurais do Estado da Paraíba. Nasceu em Areia-PB, a 27 de dezembro de 1914. Filho do Major José Patrício de Carvalho (farmacêutico) e de Maria de Almeida Carvalho. Avós paternos Flávio Pinto de Carvalho e Domitila Patrício de Carvalho. Avós maternos: Francisco Galdino de Almeida e Rosa Amélia de Almeida. Casou-se, em 1940, com Creusa Moreira da Costa (Creusa Moreira de Carvalho, após o casamento).
[ii]
Em 17 de outubro de 1939, o município de Piranhas passou a se chamar Marechal
Floriano, pelo decreto-lei federal nº 1686, voltando à antiga denominação
(Piranhas) em 17 de setembro de 1949, pela lei nº 1473.
[iii]
DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 21 de março de 1946, p. 5.