Por Etevaldo
Amorim
Dona Melina, uma
senhora que morava bem perto da nossa casa, no Limoeiro[i],
era exímia contadora de histórias. Ainda menino, eu me detinha por horas a
ouvi-la, e me deliciava com os causos e relatos fantásticos que sua mente
prodigiosa guardara por longos anos.
Nascida no Mocambo, um
arruado pertencente ao município de Porto da Folha, Estado de Sergipe, na
margem direita do rio São Francisco, Hermelina Carmelita dos Santos[ii]
era negra, como quase todos os que viviam naquele núcleo de descendentes
africanos. Seu modo de falar e suas boas maneiras, no entanto, denotavam ter
frequentado regularmente os bancos escolares, tal era a capacidade de fixar e
interpretar o que lia, e nos transmitir com absoluta fidelidade.
Leitora voraz dos
livretos de cordel, ela transformava os versos em prosa, e nos transmitia a
essência da história de um modo tão acessível, que nos parecia estar a ver,
como em filme, o desenrolar das cenas e o desfecho arrebatador.
A sua fama se espalhava
pela vila e atraía meninos e meninas até da rua de cima, formando em seu redor
numerosa assistência, ávida por novidades contadas pela bondosa velhinha. Da
mais simples história infantil ao Romance do Pavão Misterioso[iii],
tudo era para nós um deleite, que nos deixava a todos extasiados.
Certa vez, entre uma e
outra história, quase sempre iniciada por um “era uma vez” e concluída pelo indefectível “... e foram felizes para sempre”, ela nos contou um fato, dado por
verídico, terrivelmente triste.
Muitos anos se
passaram, e eis que encontro, em um jornal antigo, uma história que guarda
incrível semelhança com aquela que nos contou. Mas, em vez de transmitir o
relato de Dona Melina, prefiro transcrever o fato noticiado no Jornal do Penedo,
em carta de 12 de junho de 1875, por um correspondente que se assinava por
Descartes.
Piranhas, 1875. Foto Marc Ferrez. |
Eis o seu relato:
“No
dia 9, deu-se um fato lamentável nesta vila. Ao amanhecer desse dia, Francisco
da Silva foi à casa do delegado Manoel Thimoteo de Amorim[iv]
dar parte que sua mulher se achava esbordoada, e ao mesmo tempo chamou o
vigário para ouvi-la de confissão.
O
delegado, com o escrivão Pinto[v],
procederam ao corpo de delito, e foi logo recolhido à prisão o dito Francisco
da Silva e um filho menor que, na ocasião, se achava em casa.
Procedendo
o dito delegado nas averiguações e diligências legais para o esclarecimento da
verdade, está descoberto que foi o crime praticado pelo próprio Francisco da
Silva, pela forma seguinte:
A
mulher do desditado, apesar de ser mãe de muitos filhos, era infiel! O
desgraçado marido, homem reconhecidamente morigerado[vi],
trabalhador, amante de sua mulher e filhos, vivia desconfiado do que se passava
em sua casa e que já estava no domínio do público. Mudou de rua, esteve fora da
vila, andou por algum tempo com a família sem moradia certa, evitou a desgraça
por algumas vezes; mas o seu cabrion[vii]
nunca o deixou!
Recorreu
a terceiras pessoas para fazerem com que o perturbador da paz de seu lar
doméstico mudasse de linha de conduta; mas tudo foi inútil!
No
dia 8, Francisco da Silva, que vive sempre de viagem, como canoeiro, subiu com
destino a Piranhas. Em meio do caminho, faltando vento, volta e chega nesta
vila de madrugada. Dirige-se a sua casa para descansar o resto da noite das
fadigas do dia e, ao chegar, encontra a porta destrancada e entra; mas estando
tudo às escuras, risca um fósforo, e testemunha a triste realidade de suas desconfianças!
Quadro doloroso! Cena horrível!
O
desgraçado marido treme, e fica estático! Abafados suspiros lhe saíram
inevitavelmente do peito, e perdendo de momento o uso da razão, só vendo diante
de si um ultraje superior e todos os males da vida, desconhecedor da Lei, cego
à toda reflexão, de cordeiro, que era, torna-se um tigre sedento de sangue!
Dá
garra de um cacete (mão de pilão) e descarrega em ambos. O adúltero acorda e
pode fugir ferido, e a adúltera fica prostrada, gravemente ferida, vindo a falecer
no mesmo dia, às três horas da tarde.
Prossegue
o processo seus termos ulteriores contra o infeliz Francisco da Silva, que por
força de nossas leis criminais, é réu de crime de morte!!!!
Au
revoir.
Descartes.”
*** ***
Transcrito do Jornal do
Penedo, 27 de junho de 1875.
*** ***
Pão de Açúcar-AL, 1875. Foto Marc Ferrez. |
Incrível semelhança!
Quase tudo o que relatou o missivista do Jornal do Penedo, guarda
correspondência com a narrativa de Dona Melina: o canoeiro em viagens
constantes rio abaixo, rio acima... a falta de vento, a volta para casa, a cena
terrível, a fúria.
Apenas uma diferença: a
arma do crime. O correspondente menciona um cacete (mão-de-pilão). Mão-de-pilão
é uma peça usada para socar grãos em um pilão, principalmente arroz, até deixá-lo
sem a casca. Consiste em uma barra de madeira de cerca de 80 cm, com cerca 10
cm de diâmetro nas extremidades, um pouco mais fina ao centro, onde se pega com
as duas mãos.
Dona Melina falava em
cana-de-leme. A cana-de-leme é uma barra de mateira um pouco mais fina que a
mão de pilão, utilizada para manobrar o leme da canoa. Assim como os remos e
panos (velas), também é guardada em casa.
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NOTA:
Caro
leitor,
Deste
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de
informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita
pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência
bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse
para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior
proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a
citação das referências. Isso é correto e justo.
Tratamento
de imagens: Vívia Rodrigues Amorim.
[i]
Limoeiro (que também se chamou Alecrim), é uma Vila pertencente ao município de
Pão de Açúcar-AL, situada na margem esquerda do rio São Francisco.
[ii]
Hermelina Carmelita dos Santos nasceu no povoado Mocambo, município de Porto da
Folha-SE, em 1901. Filha de Thomaz José da Rocha e Ana Maria de Souza. Casou-se
no mesmo povoado em 13 de fevereiro de 1924, com Jordelino José dos Santos (seu
Jorde).
[iii]
Romance do Pavão Misterioso, do poeta e cordelista paraibano José Camelo de
Melo Resende (Guarabira-PB, 20 de abril de 1885 - Rio Tinto, 28 de outubro de
1964).
[iv]
Manoel Timotheo d’Amorim, Delegado, vereador, comerciante no ramo de padarias,
tesoureiro da Estrada de Ferro Paulo Afonso. Era casado com Maria Francelina de
Amorim, com que teve a filha Maria Joaquina de Amorim (casada com Targino
Salathiel Canuto).
[v]
João Pinto de Oliveira Costa, 1º Tabelião e Escrivão do Cível, Crime e de Órfãos.
[vi]
Morigerado: que denota bons costumes; que leva vida irrepreensível.
[vii]
Cabrion, personagem do romance Os Mistérios de Paris (1842), do francês Eugène
Sue. Na obra, ele é um pintor que passa uma temporada na casa do casal Pipelet
e os importuna, ao ponto de tornar a vida deles um estorvo. Logo, Cabrião
(aportuguesado) é um indivíduo maçante, que importuna. Fonte: O CABRIÃO
(1866-1867): PENA E TINTA A SERVIÇO DA SÁTIRA HUMORÍSTICA, por Guilherme Rabelo
Fernandes. Disponível em: https://blog.bbm.usp.br/2020/o-cabriao-1866-1867-pena-e-tinta-a-servico-da-satira-humoristica.
Acesso em: 08/08/2024.