sábado, 25 de setembro de 2021

HENRY FURNISS EM VIAGEM PELO BAIXO SÃO FRANCISCO

 

Por Etevaldo Amorim


De 1898 a 1905, o consulado dos Estados Unidos da América, em Salvador, teve à frente o Dr. Henry Furniss, extraordinária figura humana, por suas múltiplas competências e pelas diversas atividades pelas quais se interessava. Ele foi um diplomata, escritor e naturalista, com dedicação especial para a mineralogia.

Henry W. Furniss

Nasceu no Brooklyn, Nova York, em 14 de fevereiro de 1868. Seus pais eram negros livres, criados e educados no Norte. Seu pai, William H. Furniss, fazia o curso superior em New Hampshire, antes de partir para a guerra. De volta a Nova York, casou-se com a professora Mary Elizabeth Williams, em 1867.[i] A família mudou-se para Indianápolis, onde Hemry foi educado em escolas da cidade.

Ele foi o primeiro afro-americano a receber um diploma de mestrado da Harvard Medical School e, segundo consta, foi o primeiro afro-americano a receber um MD e um PhD.

Era cirurgião praticante no Freedman’s Hospital, Washington D.C, com diploma médico e de farmacêutico obtido na Howard University em 1895, quando foi recomendado para o serviço estrangeiro por um grupo de congressistas republicanos de Indiana.

H. Furniss, sentado à direita, com colegas médicos, no Freedman’s Hospital, 1895 ou 1896


Nomeado para o consulado na Bahia em janeiro de 1898, assumiu a 7 de março daquele ano, no qual permaneceu por sete anos, quando foi designado para a Embaixada no Haiti, a 23 novembro 1905,[ii] onde serviu como Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário até 1913.

O consulado era situado, inicialmente, na Rua das Princesas, passando depois para a Praça de Palácio (Praça da Constituição). O cônsul morava na Rua da Vitória, nº 21, na pensão das irmãs Kloppenburg. Ali conheceu Anna, sobrinha das proprietárias. Ela viera da Alemanha para ajudar as tias, em 1897.

Numa época em que casamento entre brancos e negros ainda era ilegal em Indiana e em muitos outros Estados americanos, e mesmo no Brasil não era bem visto, fizeram com que o casamento fosse, o quanto possível, ocultado.

Assim, em 1903, na volta ao Brasil, depois da sua visita aos Estados Unidos[iii], fez uma escala de algumas semanas em Londres. Nesta cidade, no dia 19 de outubro, casou-se com a alemã Anna Lüthge Wichmann, ele com 35 anos e ela com 34. O jornal Correio do Brasil, Bahia, de 23 de novembro de 1903, noticia a chegada o cônsul. Nada fala, porém, de sua esposa.

Anna e Henry em 1922.


Furniss participou de expedições junto com técnicos brasileiros. Em 4 de abril de 1905, por exemplo, partiu de Salvador para a Serra da Diamantina juntamente com o Professor Alpheu Diniz e o Engenheiro Joaquim Bahiana.[iv] Em dezembro do mesmo ano, ele e o Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida acompanharam o novo governador, José Marcelino de Souza, numa excursão oficial de um mês pelo Vale do Rio São Francisco. Ocasião em que plantaram juntos uma variedade de uva norte-americana no vinhedo modelo de Juazeiro. Talvez tenha sido nessa mesma vigem, em dezembro de 1904 ou, no mais tardar, início de 1905, Furniss empreendeu viagem à Cachoeira de Paulo Afonso.

Cinco anos depois, em janeiro de 1910, fez publicar no BOLETIM DO BUREAU INTERNACIONAL DA REPÚBLICA AMERICANA[v], um artigo intitulado “A Trip to Paulo Affonso Falls”, em que descreve a Região do Baixo São Francisco, desde Penedo até as cachoeiras, fazendo importantes registros geográficos e sociológicos.

O mesmo artigo foi também publicado no The Elbert County Tribune, em agosto do mesmo ano,[vi] na revista LEITURA PARA TODOS, Rio de Janeiro, Ano VII – nº 76 – Junho de 1912.

Nessa publicação, encontramos ainda belas fotografias de diversas localidades, como Penedo, São Brás, Traipu, Pão de Açúcar e Piranhas, Estado de Alagoas; e Propriá, em Sergipe. As imagens também mostram aspectos da flora, da fauna e das cachoeiras, que comprovam a fidelidade da descrição apresentada.

Passemos, então, a conhecer esse importante legado desse notável diplomata americano:

 

VIAGEM À CACHOEIRA DE PAULO AFONSO

 “A maioria dos touristes que vão ao Brasil não só veem uma pequena parte do país, porque viajam em vapores que somente tocam nos portos mais importantes, como também aceitam, com muita facilidade, os conselhos gratuitos dos seus compatriotas, que nunca se perderam pelo interior da grande República. Eles falam, como se o fizessem com conhecimento de causa, sobre os perigos e dificuldades de uma jornada ao interior.

Por mais que todas as cidades tenham seus característicos próprios, mais notadamente em umas que em outras, sempre há uma qualquer semelhança entre todas que, em geral, uma pessoa se cansa depressa de quase todas as cidades estrangeiras. Esta monotonia, porém, não se sente no interior de um país como o Brasil, que abunda em paisagens encantadoras, plantas, animais, e, sobretudo, esplêndidas maravilhas naturais, que dão ao viajante uma nova sensação a cada passo. Tal é o efeito que produz uma excursão à majestosa Cachoeira de Paulo Afonso.

Para chegar a essa estupenda queda d’água, é necessário tomar em Pernambuco ou Bahia um vapor costeiro dos que se destinam a Penedo, cidade situada a 30 milhas dentro do pitoresco Rio São Francisco, que é navegável em uma extensão de mais de mil milhas, com exceção de uma pequena distância entre ambos os lados da grande cachoeira.

Penedo é a segunda cidade do Estado de Alagoas, muito pitoresca, e é um centro comercial de grande importância. Quase fronteira a Penedo, está situada a antiga cidade de Vila Nova, no Estado de Sergipe, a qual agora só é representada por umas quantas casas.

De Penedo a Piranhas pode-se fazer a viagem em vapor ou em canoa. Difícil é aconselhar qual dos dois meios é o melhor. Isto é uma coisa que depende do caráter do viajante, de seus companheiros e das circunstâncias de momento.

O autor do artigo de que nos servimos fez uso do vapor e da canoa, segundo as necessidades e o humor em que se encontrava nas diferentes ocasiões em que fez a excursão. Pelo que diz respeito ao tempo, um método é tão rápido quanto o outro, pois em ambos se gastam dois dias para o percurso das 150 milhas e outras tantas para a volta.

O vapor permanece em Piranhas um dia somente, de modo que, a menos que se deseje passar uma semana nas cercanias da cachoeira, a canoa é o único meio de regressar a Penedo, prontamente. No vapor há a facilidade de alimentação, etc..., ao passo que na canoa o viajante é forçado a levar suas provisões.

A jornada em canoa é emocionante e sumamente pitoresca. Para a ida é utilizada a brisa durante o dia, e com as velas enfunadas a canoa marcha com relativa velocidade. Pela noite, atraca-se em qualquer ponto da margem, a fim de aguardar o romper do dia imediato. De volta, deixa-se que a poderosa correnteza do rio leve a canoa a seu destino, operação essa que é feita depois do pôr do sol. Assim, pois, ao contrário da ida, a viagem de volta efetua-se à noite.

Entre Penedo e Piranhas há vários povoados de importância, sendo os principais Propriá e Gararu, no Estado de Sergipe, e São Brás, Traipu e Pão de Açúcar, no Estado de Alagoas. Esses pontos todos são tão interessantes que vale à pena visita-los.

O cais do Penedo. Foto H. W. Furniss,1904/1905

                              

São Brás, AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.




Propriá, SE. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.





Traipu, AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.



Pão de Açúcar, AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.






No Monumento a D. Pedro II

O rio São Francisco abaixo das quedas. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.

Depois de deixar o turbulento redemoinho inferior, o rio corre rapidamente por alguns quilômetros através de um desfiladeiro profundo e estreito.

Monumento comemorativo da visita de D. Pedro II às cachoeiras de Paulo Afonso-foto H. W. Furniss, 1904/1905.

Piranhas-AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.

“Esta pitoresca cidade está situada até o qual chegam os vapores na parte baixa do Rio São Francisco. Uma estrada de ferro a põe em comunicação com Jatobá, um pouco acima das quedas, a uma distância de 71 milhas, onde se recomeça a navegação fluvial. ”

As corredeiras inspiradoras da alma. Foto H. W. Furniss, 1904/1905.

Antes de chegar às quedas principais, quatro braços do rio descem em uma série de cascatas, a água batendo nas pedras como se apressasse para dar o salto final na “Mãe das Cachoeiras”.

O início das corredeiras, acima das quedas principais-foto H. W. Furniss. 1904/1905.

"Um pouco distante acima, onde o rio unido faz seu último grande mergulho, ele se divide em cinco braços, quatro dos quais avançam por trenós rochosos e descem com um rugido poderoso que pode ser ouvido por muitos quilômetros.

                                          O morcego vampiro. Foto H. W Furniss, 1904/1905.

Um grande número desses animais ferozes habitam uma caverna na parte inferior do redemoinho das cataratas. Suas conhecidas propensões a sugar sangue os tornam um incômodo para os criadores de gado da vizinhança.


Canoas navegando a toda vela (pano de asa). Foto H. W. Furnis, 1904/1905

“Este barco indígena é muito usado para o transporte de passageiros, sendo o resto da embarcação destinado ao transporte da carga. Muitas vezes, para a viagem a Paulo Afonso, essas canoas andam mais depressa que os próprios vapores, devido ao vento que durante o dia só ajuda a sua carreira. De volta, a viagem é feita rio abaixo, de noite, com o auxílio extraordinário da corrente, que é sumamente rápida. ”


Caroá, uma planta de fibra valiosa do brasil-foto H. W. Furniss, 1904/1905.

“Esta planta é usada apenas pelos nativos para fazer uma espécie de cordão, mas sem dúvida terá importância comercial por causa de suas grandes qualidades de resistência à seca.”


Cactos e arbustos na Região de Paulo Afonso.
Foto H. W. Furniss, 1904/1905.

Cawboy do bairro Paulo Afonso-foto H. W. Furniss, 1904/1905

”Devido ao país nesta seção ser repleto de cactos e outras plantas cobertas de espinhos, esses criadores de gado usam trajes completos de couro, e até mesmo seus cavalos devem ser protegidos com couraças de couro, tornozeleiras e protetores faciais.”

O rio logo abaixo da última queda-foto H. W. Furniss

”Devido ao país nesta seção ser repleto de cactos e outras plantas cobertas de espinhos, esses criadores de gado usam trajes completos de couro, e até mesmo seus cavalos devem ser protegidos com couraças de couro, tornozeleiras e protetores faciais.”

Cachoeira do Angiquinho, formada por um dos braços preferidos do rio que se formam neste ponto. Foto H. Furniss.

“Cachoeira do Angiquinho, formada por um dos braços preferidos do rio que se formam neste ponto. Da pequena ilha do centro, a água dá um salto de 72 pés para se juntar ao corpo principal na "Mãe da Cachoeira", que então desce com um rugido poderoso a uma distância de 30 metros.”





Piranha ou "Peixe Tesoura". Foto H. W. Furniss, 1904/1905.

“Este peixe se encontra com muita abundância no Rio São Francisco. É carnívoro e com muita frequência ataca os animais que ao rio vão beber água. ”







Em Piranhas, toma-se a estrada de ferro para Jatobá, distante 17 milhas, e daí se recomeça a navegação no Alto Rio São Francisco.

Na metade do caminho está Pedra, onde se conseguem os guias, cavalos e provisões para o resto da excursão, que dura mais de três horas. Para evitar, porém, o intenso calor que faz durante o dia, é bom fazer este último trajeto pela madrugada. Depois de atravessar sendas bordadas de plantas e árvores de infinitas variedades e bosques e vegetação exuberantíssima, chega-se às cercanias da cascata, caracterizada pela completa nudez do terreno, em notável contraste com o que se acaba de vencer.


Como é natural, o aspecto da cachoeira de Paulo Afonso varia com as estações, isto é, de acordo com a quantidade de água que tenha o rio no momento. Quando o rio está na cheia, formam-se cataratas adicionais ao redor da cascata principal.

A melhor época para visitar o importante salto é quando o rio baixa o suficiente para que uma pessoa possa cruzar as inúmeras quebradas pelas quais a água se precipita na estação da cheia.

Em vista da Cachoeira de Paulo Afonso consistir de uma sucessão de fortes correntezas e saltos que terminam em uma grande cascata, a opinião acha-se dividida sobre qual o ponto que deve ser visitado primeiramente.

Para o autor do artigo em questão a parte mais formosa e imponente são os saltos. Ao contemplá-los, uma pessoa não pode deixar de reconhecer a verdade expressada no seguinte juízo de um estrangeiro: “Se o Niágara é a rainha das cataratas, Paulo Afonso é a dos saltos”.

O fato é que a Cachoeira de Paulo Afonso é a única no gênero, visto estar isenta das obras artificiais que tanto enfeitam o Niágara.

Perto da cascata moram alguns homens que conhecem o terreno palmo a palmo e que se prestam a guiar o touriste por uma módica compensação. O caminho que o guia toma conduz primeiro a várias quebradas e depois passa perto dos espumantes e impetuosos saltos pequenos que se vão precipitar a uns 100 pés mais adiante. Por último, chega-se à “Mãe das Cascatas”, roca assim denominada porque nela se reúnem as diferentes correntes dos rios para darem o grande salto final.

Desse ponto, o espetáculo que se contempla é verdadeiramente sublime. Em frente ao espectador fica a Cascata de Angiquinho, formada por um braço do rio principal. Desse mesmo ponto contempla-se uma imensidade de pequenos saltos admiráveis, mesmo tempo que se veem de uma altura de 72 pés as águas que se reúnem na “Mãe das Cascatas”, e mais abaixo o salto final de 190 pés, espetáculo esse sobremaneira imponente, que inspira mais espanto do que realmente prazer.

As cataratas têm, aproximadamente, a forma de uma meia-lua. O corpo da corrente precipita-se de uma vertente para a “Mãe das Cascatas”. A largura do rio nesse ponto é de uns 50 pés, e a profundidade da água na base das cascatas é calculada em 86 pés.

Depois de apreciado esse lugar, o guia conduz o viajante a uma parte do rio em que, rodeadas de bancos de roca negra, as águas descansam tranquilamente. Mais abaixo nota-se uma grande quantidade de ilhotas que brotam da superfície da água; é nesse ponto que a corrente volta a tomar a sua vertiginosa rapidez para, pouco mais adiante, precipitar-se com ensurdecedor estrondo. Pouco mais ou menos por essa parte está o sítio de onde o Sr. Dom Pedro II contemplou a cachoeira e no qual se encontra uma pedra comemorativa da visita imperial.

Dizem os guias que a excursão a Paulo Afonso não é completa sem uma visita à Cova dos Morcegos, para cuja chegada é necessário escalar penhascos e mais penhascos, perigosíssimos.

Salvador, Bahia, 1905. Coleção Derby.

Esse lugar, de resto, é uma caverna que não tem nada de interessante, além dos inúmeros vampiros que nela habitam”.

Salvador. Foto H. Furniss, 1904/1905

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Caro leitor,

 

Este Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.

 



[i] LOSCH, Paul S. HENRY W. FURNISS,CÔNSUL AFRO-NORTE-AMERICANO NA BAHIA,1898-1905.

[ii] Mozard LOMBARD (mars 2014). La signification des actions des missions diplomatiques américaines en Haïti à travers les discours de Kenneth H. MERTEN Mémoire pour l’obtention du grade de licencié en Communication Sociale, Faculté des sciences humaines, Université d’État d’Haïti.

 

[iii] O Cônsul já tinha feito uma viagem à sua Pátria, em 1903, segundo o jornal A Imprensa, do Rio de Janeiro. O Jornal, de Belém do Pará, registra a sua chegada à Capital paraense, em 27 de novembro de 1900, anotando que ele pretendia demorar-se alguns dias em casa do Sr. Luiz Soares, seguindo depois para Nova York.

[iv] GAZETA DE NOTÍCIAS, Bahia, 4 de abril de 1905.

[v] BULLETIN OF THE INTERNATIONAL BUREAU OF THE AMERICAN REPUBLICS, Vol. XXX, January – June, 1910. P. 66.

[vi] The Elbert County Tribune, Volume 26, Número 1, 5 de agosto de 1910, disponível em https://www.coloradohistoricnewspapers.org.

 



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

THEODORO SAMPAIO NO BAIXO SÃO FRANCISCO

 

Por Etevaldo Amorim

Theodoro Sampaio

Dentre as várias expedições organizadas pelo Governo Imperial para analisar as possibilidades de melhoria na navegação no rio São Francisco, destaca-se a Comissão Hidráulica.[i] Constituída em 5 de janeiro de 1879, pelo Conselheiro Cansanção de Sinimbu[ii], à frente do 27º Gabinete Ministerial, e comandada pelo engenheiro americano William Milnor Roberts. Dela fazia parte o engenheiro Theodoro Sampaio.[iii]

Tinha, então, vinte e quatro anos, e há apenas dois se formara em Engenharia Civil pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, conhecida como “Escola Central”.

No dia 17 de agosto de 1879, por volta das seis horas da manhã, partia do Penedo, a bordo do vapor Sinimbu, com destino a Piranhas, último ponto do trecho navegável do Baixo São Francisco, “viagem que ordinariamente se faz em dois dias, pousando-se na cidade de Pão de Açúcar, que se alcança antes do pôr do sol.”

Naquele mesmo dia, Sampaio e os demais membros da comissão chegaram a Pão de Açúcar e logo saltaram para conhecer a cidade. Seu relato é breve, mas preciso:

“... atravessamos a pé o largo lençol d’areia que a precede e percorremos-lhe as ruas retilíneas, planas, marginadas de edificações humildes e sem elegância. Nenhum edifício notável se descobre, nem mesmo a igreja que, aliás, oferece melhor aspecto vista de longe.”

Pão de Açúcar-AL, vendo-se, à esquerda, o "largo lençol d'areia". Foto Marc Ferrez, 1875.


“Pão de Açúcar não oferece de notável senão a sua paisagem pitoresca, que a montanha cônica que lhe dá o nome aformoseia, e o perfil azulado da serra dos Meirus, duas léguas longe, torna quase encantador. ”

Retornando já tarde ao navio, neste pernoitaram para, no dia seguinte às 7 horas da manhã, “apesar da abundante chuva que caia”, continuar a viagem até chegar a Piranhas às 10 horas.

Três horas depois chegava a Piranhas, que então pertencia ao Município de Pão de Açúcar, sendo a Comissão recebida no porto pelos técnicos que iniciavam a construção da estrada de ferro, chefiados pelo engenheiro Reynaldo Kruger.[iv]

Encontraram ali uma população majoritariamente composta de mulheres e crianças, posto que os homens se achavam distribuídos ao longo da estrada que se construía. E assim se fazia a despeito das péssimas condições topográficas do lugar, deixadas de lago pela forte influência do Conselheiro Sinimbu, alagoano e Ministro do Império, que pleiteou a construção da estrada justamente para mitigar os danos causados pela seca de 1877, cujos efeitos se fazia mais sentir justamente naquele momento.

Estrada de Ferro Paulo Afonso_km 26, em construção. Foto Ignáco Mendo, 1880.


Esse fato não passou desapercebido a Theodoro Sampaio, que chegava “exatamente na ocasião em que se distribuíam os socorros pela população faminta no barracão próximo à estação da estrada de ferro. O aspecto dessa gente não negava os sofrimentos por que tinham passado. As mulheres e as crianças macilentas e com as roupas em farrapos, assentadas pelo chão, traiam um sofrimento que os primeiros socorros não lograram totalmente extinguir. ”

Theodoro Sampaio manuseando um teodolito.


Após a visita à Cachoeira de Paulo Afonso, Theodoro Sampaio publicou na revista ILUSTRAÇÃO DO BRASIL – Ano II – Nº 14 – 1880, um artigo intitulado:

A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO – IMPRESSÕES DE VIAGEM

Não sei, meu amigo, como traduzir-lhe em nossa linguagem, tão pobre e mesquinha, as impressões variadíssimas, os sentimentos desencontrados, que experimentei em face desses abismos extraordinários onde se precipitam as águas volumosas do S. Francisco.

- A Cachoeira de Paulo Afonso! Quem, no Brasil, não a conhece, mas quão poucos a tem visitado!

É, pois, fácil de compreender com quanto afã, com quanto ardor seguíamos nós através daqueles tabuleiros estéreis, pedregosos, tostados pelo sol abrasador do estio em demanda da famosa catarata.

Esquecíamos tudo: a escassez d’água, a ruindade dos caminhos, a intensidade do calor, e mais que tudo, a “excelência” das cavalgaduras de nossa montada, as mais próprias para curar a monomanias de viagem.

Havíamos partido do porto de Piranhas, onde cessa completamente a navegação do Baixo São Francisco; ganhamos o planalto, e paralelamente a estrada de ferro, agora em construção, fomos pousar depois de dois dias de marcha na Estação da Pedra, quatro ou cinco léguas distante da cachoeira.

Como são tristes estas terras onde o céu não chove, e onde a vegetação, sem viço, jaz perdida e sem conforto!

Piranhas. Habitações precárias de retirantes e empregados na construção da Estrada de Ferro. Foto Ignácio Mendo, 1880.


Já lá vão três anos que a última gota de chuva se desprendeu das nuvens por sobre essas paragens, e até hoje o céu, conquanto nublado, coberto de cúmulos e nimbos prometedores, lá está ainda a negar uma gota de água, a essa terra sequiosa e infeliz. Só o cardo medra nestas paragens inóspitas, e, esguio, viçoso, espinhento e inalterável ergue os braços para um céu indiferente, desapiedado!

Diante de tanta aridez, o povo fugiu. Fugiu ou pereceu toda a criação dos campos, os pássaros, os próprios pássaros sumiram-se, desapareceram também; uma tristeza, uma monotonia esmagadora, imperam por toda parte.

Tal é o aspecto da região que atravessamos em caminho a Paulo Afonso.

Saímos da Pedra pela manhã, e só depois de quatro horas de péssimos caminhos, avistamos ao longe as planícies onde corre o S. Francisco, de que nos havíamos apartado desde Piranhas.

Que planícies niveladas, que tabuleiros extensos, onde a custo rompem a monotonia alguns serros azuis nos confins do horizonte, alguns outeiros isolados no imenso tapete verde-negro das “caatingas”! Depois o rio, como uma enorme fita prateada, retalhando o horizonte, em meio desaparecendo estão os sítios onde vai formar as cachoeiras. Estas distavam de nós uns três quilômetros apenas, devíamos já ouvir-lhe o bramido atroados das catadupas, e avistar também o nevoeiro denso que se lhe ergue dos abismos. Tudo isto se nos passou desapercebido, por um estado particular da atmosfera.

Estrada de Ferro Paulo Afonso_km 3,vendo-se Canindé Foto Ignáco Mendo, 1880.


Chegamos, enfim, apeamo-nos à porta de uma pobre cabana, em cujo alpendre devíamos pernoitar. O guia, morador deste lugar, havia partido horas antes, e só pela noite estaria de volta a seu posto. Resolvemos, pois, examinar os sítios com os nossos próprios recursos, aproveitando o resto da tarde.

As cachoeiras, que são muitas, traíam-se apenas por um rumor surdo. Marchamos contra este ruído, que nos parecia longínquo, paramos para ver o bronze comemorativo da viagem do Imperador, e seguimos além por entre pedras enegrecidas, blocos graníticos arredondados, polidos, reluzentes, ora pretos em seco; mas depois assoberbados pelas águas impetuosas do inverno.

Meia hora depois chegamos ao alto de uma penedia, verticalmente talhada, quase ao nível do tabuleiro. Dir-se-ia que a terra em suas primeiras épocas se retraiu convulsionada, deixando um sulco profundo e estreitíssimo, para onde se despenham as águas do rio.

Do alto desta medonha penedia, 500 metros adiante de nós, precipitava-se no abismo uma bela e volumosa coluna d’água, obliquamente iluminada pelos últimos raios de sol do ocaso.

Apesar das belezas do sítio, senti, entretanto, que se me arrefecia o entusiasmo. A cachoeira que eu havia imaginado, o meu ideal de Paulo Afonso estava muito além do que eu acabava de ver. Para meu consolo, porém, fui logo informado que a queda d’água que acabávamos de visitar era uma das menores, e das menos importantes. A maior, vê-la-íamos amanhã.

Cachoeira de Paulo Afonso_foto Ignácio Mendo, 1880.


Caia a noite quando voltamos à cabana. No dia seguinte, pela manhã, o guia rompia a marcha por entre as pedras e os precipícios do leito posto em seco. Uma hora depois galgávamos um rochedo, de cujo ápice se desfrutava toda a grande cachoeira. Vimos então, numa profunda depressão do granito, rolarem as águas em borbotões de espuma alvíssima, em esplêndido contraste com as lajes negras do fundo. Vimos desde o alto da penedia, onde o rio começa a despenhar-se, até a bacia interior onde refervem as águas em turbilhão, por toda a encosta, por todas as anfractuosidades do rochedo, de 250 palmos de alto, despenharem-se os novelos de espuma, quebrarem-se de encontro às portas de pedra, espadanarem pelas encostas e, rugindo, abismarem-se em vórtice imenso. Por sobre as fauces do abismo, o Ires desdobrava então o seu diadema múltiplo de cores cambiantes.

Quedamos silenciosos diante de tanta majestade! O guia, porém, ergueu a voz, e do peito largo saiu uma dessas interjeições prolongadas, sonoras, misto de admiração, de espanto e de alegria; mas que o bramir das águas sufocou em meio, tornando-a apenas perceptível.

 Alguns dos nossos companheiros eram norte-americanos; outros já haviam visitado a célebre cascata do Niágara, e concordaram todos que a Paulo Afonso, conquanto de tipo inteiramente diverso, é, entretanto, mais volumosa, mais cheia de variedades.

O capitão Burton[v] chama-a “O rei dos Rápidos” (the king of Rapids), apelidando a do Niágara “a rainha das cascatas” (the King of the Falls).

Cachoeira de Paulo Afonso. Foto Marc Ferrez, 1875.


Com efeito, lá, no Niágara, as águas se despenham verticalmente em imenso lençol; aqui, em Paulo Afonso, temos um plano fortemente inclinado por onde se precipitam as águas em gigantesco rápido. Lá, é mais alta a queda, mais pronunciada, mais elegante; aqui, já mais volume d’água, há mais asperezas, mais majestade, mais variedade de sítios.

Tirei o lápis, o meu álbum, companheiro inseparável de viagem, e fazia a largos traços um esboço desse esplêndido conjunto de águas e de penedias, quando senti que já havia ficado só naquele labirinto de pedras. Olhei em torno de mim, não vi viva alma; meus companheiros haviam descido o despenhadeiro, ganhavam a caverna numa das extremidades da cachoeira, percorriam-na em grande parte, e voltarem por sobre precipícios, ora faltando-lhe o equilíbrio, ora margeando nas pontas ásperas do rochedo, feridos os joelhos, o facto rodo e as mãos calejadas.

Voltei, pois, aos meus esboços, concluídos que foram, segui a esmo através daquelas asperezas, e fui deparar com o caminho do dia anterior, quando já assustado me considerava perdido.

Inundado de suor, sequioso porque inacessível era a água do rio nesses sítios, deixei-me cair fatigado sob a copa frondosa do angico, cuja sombra amiga contrastava imenso com a ardência do sol já em seu Zenith.

Duas horas depois prosseguimos em nossa jornada, levando a alma satisfeita e a memória enriquecida de um dos passos mais interessantes da nossa vida. Partimos para Jatobá, onde deviam começar os trabalhos do governo.

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Adaptado do livro Terra do Sol Espelho da Lua, AMORIM, Etevaldo Alves. Ecos Gráfica e Editora – Maceió – 2004.

A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO – IMPRESSÕES DE VIAGEM, transcrito do

ILUSTRAÇÃO DO BRASIL – Ano II – Nº 14 – 1880. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira:  http://memoria.bn.br/DocReader/758124/819

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Caro leitor,

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[i] Comissão Hidráulica. Composta pelos engenheiros William Milnor Roberts, Antônio Plácido Peixoto do Amarante, Rodolf Wieser, Domingos Sérgio de Sabóia e Silva, Alfredo Lisboa, Miguel Antônio Lopes Pecegueiro, Tomás de Aquino e Castro, Orville Adelbert Derby e Theodoro Fernandes Sampaio.

 

[ii] João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (1810-1906). Foi o 22º Presidente da Bahia, de agosto de 1856 a maio de 1858. Foi Senador por Alagoas.

 

[iii] Theodoro Fernandes Sampaio nasceu no dia 7 de janeiro de 1855, na sacristia da capela do Engenho Canabrava, em Bom Jardim, município de Santo Amaro, Estado da Bahia. Sua mãe era Domingas da Paixão do Carmo, escrava do Visconde de Aramaré. Suspeita-se que seu pai seria o sacerdote da igrejinha da Casa Grande do Engenho. No seu registro de óbito consta como pai: Joaquim Fernandes Sampaio. Entretanto, na sua biografia no CPDOC/FGV, consta que é filho, não reconhecido, de Francisco Antônio da Costa Pinto.

Foi casado com Capitulina Maia Fernandes, com quem teve o filho Carlos Theodoro Sampaio e, em segundas núpcias, a 14 de agosto de 1935, com Amália Augusta Barreto, filha do Coronel João José Barreto e Adelaide Augusta Barreto. Participou ativamente do movimento abolicionista, tendo sido sócio-fundador da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, entidade fundada por Joaquim Nabuco, em parceria com José do Patrocínio e André Rebouças. Foi Deputado Federal pela Bahia, tendo tomado posse em 02/05/1927. Faleceu no Rio de Janeiro em 15 de outubro de 1937, aos 82 anos de idade. Dá nome a dois municípios brasileiros: um no Estado da Bahia e outro no Estado de São Paulo.

 

[iv][iv] Reynaldo von Kruger. Engenheiro em Chefe da construção da Estrada de Ferro Paulo Afonso, designado em 1878. Faleceu em Uberaba-MG, aos 84 anos, no dia 25 de julho de 1919. Alemão naturalizado brasileiro, posto que aqui permaneceu por mais de 50 anos de sua vida. Casado com Maria Alves Montes, com quem teve cinco filhos, entre eles Fernando von Kruger.

[v] Richard Francis Burton KCMG FRGS (Torquay, 19 de março de 1821 — Trieste, 20 de outubro de 1890) foi um escritor, tradutor, linguista, geógrafo, poeta, antropólogo, orientalista, erudito, espadachim, explorador, agente secreto e diplomata britânico.

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

______________

Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


*****


PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia