Por
Etevaldo Amorim
De 1898 a 1905, o consulado dos Estados Unidos da América, em Salvador, teve à frente o Dr. Henry Furniss, extraordinária figura humana, por suas múltiplas competências e pelas diversas atividades pelas quais se interessava. Ele foi um diplomata, escritor e naturalista, com dedicação especial para a mineralogia.
Henry W. Furniss |
Nasceu
no Brooklyn, Nova York, em 14 de fevereiro de 1868. Seus pais eram negros
livres, criados e educados no Norte. Seu pai, William H. Furniss, fazia o curso
superior em New Hampshire, antes de partir para a guerra. De volta a Nova York,
casou-se com a professora Mary Elizabeth Williams, em 1867.[i] A família mudou-se para
Indianápolis, onde Hemry foi educado em escolas da cidade.
Ele
foi o primeiro afro-americano a receber um diploma de mestrado da Harvard
Medical School e, segundo consta, foi o primeiro afro-americano a receber um MD
e um PhD.
Era
cirurgião praticante no Freedman’s Hospital, Washington D.C, com diploma médico
e de farmacêutico obtido na Howard University em 1895, quando foi recomendado
para o serviço estrangeiro por um grupo de congressistas republicanos de
Indiana.
H. Furniss, sentado à direita, com colegas médicos, no Freedman’s Hospital, 1895 ou 1896 |
Nomeado
para o consulado na Bahia em janeiro de 1898, assumiu a 7 de março daquele ano,
no qual permaneceu por sete anos, quando foi designado para a Embaixada no Haiti,
a 23 novembro 1905,[ii]
onde serviu como Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário até 1913.
O
consulado era situado, inicialmente, na Rua das Princesas, passando depois para
a Praça de Palácio (Praça da Constituição). O cônsul morava na Rua da Vitória,
nº 21, na pensão das irmãs Kloppenburg. Ali conheceu Anna, sobrinha das
proprietárias. Ela viera da Alemanha para ajudar as tias, em 1897.
Numa
época em que casamento entre brancos e negros ainda era ilegal em Indiana e em
muitos outros Estados americanos, e mesmo no Brasil não era bem visto, fizeram
com que o casamento fosse, o quanto possível, ocultado.
Assim,
em 1903, na volta ao Brasil, depois da sua visita aos Estados Unidos[iii], fez uma escala de
algumas semanas em Londres. Nesta cidade, no dia 19 de outubro, casou-se com a
alemã Anna Lüthge Wichmann, ele com 35 anos e ela com 34. O jornal Correio do
Brasil, Bahia, de 23 de novembro de 1903, noticia a chegada o cônsul. Nada
fala, porém, de sua esposa.
Anna e Henry em 1922. |
Furniss
participou de expedições junto com técnicos brasileiros. Em 4 de abril de 1905,
por exemplo, partiu de Salvador para a Serra da Diamantina juntamente com o
Professor Alpheu Diniz e o Engenheiro Joaquim Bahiana.[iv] Em dezembro do mesmo ano,
ele e o Dr. Miguel Calmon du Pin e Almeida acompanharam o novo governador, José
Marcelino de Souza, numa excursão oficial de um mês pelo Vale do Rio São
Francisco. Ocasião em que plantaram juntos uma variedade de uva norte-americana
no vinhedo modelo de Juazeiro. Talvez tenha sido nessa mesma vigem, em dezembro
de 1904 ou, no mais tardar, início de 1905, Furniss empreendeu viagem à
Cachoeira de Paulo Afonso.
Cinco
anos depois, em janeiro de 1910, fez publicar no BOLETIM DO BUREAU
INTERNACIONAL DA REPÚBLICA AMERICANA[v], um artigo intitulado “A Trip to Paulo Affonso Falls”, em que
descreve a Região do Baixo São Francisco, desde Penedo até as cachoeiras,
fazendo importantes registros geográficos e sociológicos.
O
mesmo artigo foi também publicado no The Elbert County Tribune, em agosto do
mesmo ano,[vi] na revista LEITURA PARA
TODOS, Rio de Janeiro, Ano VII – nº 76 – Junho de 1912.
Nessa
publicação, encontramos ainda belas fotografias de diversas localidades, como
Penedo, São Brás, Traipu, Pão de Açúcar e Piranhas, Estado de Alagoas; e
Propriá, em Sergipe. As imagens também mostram aspectos da flora, da fauna e
das cachoeiras, que comprovam a fidelidade da descrição apresentada.
Passemos,
então, a conhecer esse importante legado desse notável diplomata americano:
VIAGEM À CACHOEIRA
DE PAULO AFONSO
“A maioria dos touristes que vão ao Brasil não só veem uma pequena parte do país,
porque viajam em vapores que somente tocam nos portos mais importantes, como
também aceitam, com muita facilidade, os conselhos gratuitos dos seus
compatriotas, que nunca se perderam pelo interior da grande República. Eles
falam, como se o fizessem com conhecimento de causa, sobre os perigos e dificuldades
de uma jornada ao interior.
Por
mais que todas as cidades tenham seus característicos próprios, mais
notadamente em umas que em outras, sempre há uma qualquer semelhança entre
todas que, em geral, uma pessoa se cansa depressa de quase todas as cidades
estrangeiras. Esta monotonia, porém, não se sente no interior de um país como o
Brasil, que abunda em paisagens encantadoras, plantas, animais, e, sobretudo,
esplêndidas maravilhas naturais, que dão ao viajante uma nova sensação a cada
passo. Tal é o efeito que produz uma excursão à majestosa Cachoeira de Paulo
Afonso.
Para
chegar a essa estupenda queda d’água, é necessário tomar em Pernambuco ou Bahia
um vapor costeiro dos que se destinam a Penedo, cidade situada a 30 milhas
dentro do pitoresco Rio São Francisco, que é navegável em uma extensão de mais
de mil milhas, com exceção de uma pequena distância entre ambos os lados da
grande cachoeira.
Penedo
é a segunda cidade do Estado de Alagoas, muito pitoresca, e é um centro
comercial de grande importância. Quase fronteira a Penedo, está situada a
antiga cidade de Vila Nova, no Estado de Sergipe, a qual agora só é
representada por umas quantas casas.
De
Penedo a Piranhas pode-se fazer a viagem em vapor ou em canoa. Difícil é
aconselhar qual dos dois meios é o melhor. Isto é uma coisa que depende do
caráter do viajante, de seus companheiros e das circunstâncias de momento.
O
autor do artigo de que nos servimos fez uso do vapor e da canoa, segundo as
necessidades e o humor em que se encontrava nas diferentes ocasiões em que fez
a excursão. Pelo que diz respeito ao tempo, um método é tão rápido quanto o
outro, pois em ambos se gastam dois dias para o percurso das 150 milhas e
outras tantas para a volta.
O
vapor permanece em Piranhas um dia somente, de modo que, a menos que se deseje
passar uma semana nas cercanias da cachoeira, a canoa é o único meio de regressar
a Penedo, prontamente. No vapor há a facilidade de alimentação, etc..., ao
passo que na canoa o viajante é forçado a levar suas provisões.
A
jornada em canoa é emocionante e sumamente pitoresca. Para a ida é utilizada a
brisa durante o dia, e com as velas enfunadas a canoa marcha com relativa
velocidade. Pela noite, atraca-se em qualquer ponto da margem, a fim de
aguardar o romper do dia imediato. De volta, deixa-se que a poderosa correnteza
do rio leve a canoa a seu destino, operação essa que é feita depois do pôr do
sol. Assim, pois, ao contrário da ida, a viagem de volta efetua-se à noite.
Entre
Penedo e Piranhas há vários povoados de importância, sendo os principais
Propriá e Gararu, no Estado de Sergipe, e São Brás, Traipu e Pão de Açúcar, no
Estado de Alagoas. Esses pontos todos são tão interessantes que vale à pena
visita-los.
O cais do Penedo. Foto H. W. Furniss,1904/1905 |
São Brás, AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905. |
Propriá, SE. Foto H. W. Furniss, 1904/1905. |
Traipu, AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905. |
Pão de Açúcar, AL. Foto H. W. Furniss, 1904/1905. |
No Monumento a D. Pedro II |
Monumento
comemorativo da visita de D. Pedro II às cachoeiras de Paulo Afonso-foto H. W.
Furniss, 1904/1905. |
Cactos e arbustos na Região de Paulo Afonso. Foto H. W. Furniss, 1904/1905. |
Em Piranhas, toma-se a estrada de ferro para Jatobá, distante 17 milhas, e daí se recomeça a navegação no Alto Rio São Francisco.
Na metade do caminho está Pedra, onde se conseguem os guias, cavalos e provisões para o resto da excursão, que dura mais de três horas. Para evitar, porém, o intenso calor que faz durante o dia, é bom fazer este último trajeto pela madrugada. Depois de atravessar sendas bordadas de plantas e árvores de infinitas variedades e bosques e vegetação exuberantíssima, chega-se às cercanias da cascata, caracterizada pela completa nudez do terreno, em notável contraste com o que se acaba de vencer.
Como é natural, o aspecto da cachoeira de Paulo Afonso varia com as estações, isto é, de acordo com a quantidade de água que tenha o rio no momento. Quando o rio está na cheia, formam-se cataratas adicionais ao redor da cascata principal.
A
melhor época para visitar o importante salto é quando o rio baixa o suficiente
para que uma pessoa possa cruzar as inúmeras quebradas pelas quais a água se
precipita na estação da cheia.
Em
vista da Cachoeira de Paulo Afonso consistir de uma sucessão de fortes
correntezas e saltos que terminam em uma grande cascata, a opinião acha-se
dividida sobre qual o ponto que deve ser visitado primeiramente.
Para
o autor do artigo em questão a parte mais formosa e imponente são os saltos. Ao
contemplá-los, uma pessoa não pode deixar de reconhecer a verdade expressada no
seguinte juízo de um estrangeiro: “Se o Niágara é a rainha das cataratas, Paulo
Afonso é a dos saltos”.
O
fato é que a Cachoeira de Paulo Afonso é a única no gênero, visto estar isenta
das obras artificiais que tanto enfeitam o Niágara.
Perto
da cascata moram alguns homens que conhecem o terreno palmo a palmo e que se
prestam a guiar o touriste por uma
módica compensação. O caminho que o guia toma conduz primeiro a várias
quebradas e depois passa perto dos espumantes e impetuosos saltos pequenos que
se vão precipitar a uns 100 pés mais adiante. Por último, chega-se à “Mãe das
Cascatas”, roca assim denominada porque nela se reúnem as diferentes correntes
dos rios para darem o grande salto final.
Desse
ponto, o espetáculo que se contempla é verdadeiramente sublime. Em frente ao
espectador fica a Cascata de Angiquinho, formada por um braço do rio principal.
Desse mesmo ponto contempla-se uma imensidade de pequenos saltos admiráveis,
mesmo tempo que se veem de uma altura de 72 pés as águas que se reúnem na “Mãe
das Cascatas”, e mais abaixo o salto final de 190 pés, espetáculo esse
sobremaneira imponente, que inspira mais espanto do que realmente prazer.
As
cataratas têm, aproximadamente, a forma de uma meia-lua. O corpo da corrente
precipita-se de uma vertente para a “Mãe das Cascatas”. A largura do rio nesse
ponto é de uns 50 pés, e a profundidade da água na base das cascatas é
calculada em 86 pés.
Depois
de apreciado esse lugar, o guia conduz o viajante a uma parte do rio em que,
rodeadas de bancos de roca negra, as águas descansam tranquilamente. Mais
abaixo nota-se uma grande quantidade de ilhotas que brotam da superfície da
água; é nesse ponto que a corrente volta a tomar a sua vertiginosa rapidez
para, pouco mais adiante, precipitar-se com ensurdecedor estrondo. Pouco mais
ou menos por essa parte está o sítio de onde o Sr. Dom Pedro II contemplou a
cachoeira e no qual se encontra uma pedra comemorativa da visita imperial.
Dizem
os guias que a excursão a Paulo Afonso não é completa sem uma visita à Cova dos
Morcegos, para cuja chegada é necessário escalar penhascos e mais penhascos,
perigosíssimos.
Salvador, Bahia, 1905. Coleção Derby. |
Esse lugar, de resto, é uma caverna que não tem nada de interessante, além dos inúmeros vampiros que nela habitam”.
Salvador. Foto H. Furniss, 1904/1905 |
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Caro
leitor,
Este
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com
informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em
qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é
correto e justo.
[i]
LOSCH, Paul S. HENRY W. FURNISS,CÔNSUL AFRO-NORTE-AMERICANO NA BAHIA,1898-1905.
[ii]
Mozard LOMBARD (mars 2014). La signification des actions des missions
diplomatiques américaines en Haïti à travers les discours de Kenneth H. MERTEN
Mémoire pour l’obtention du grade de licencié en Communication Sociale, Faculté
des sciences humaines, Université d’État d’Haïti.
[iii]
O Cônsul já tinha feito uma viagem à sua Pátria, em 1903, segundo o jornal A
Imprensa, do Rio de Janeiro. O Jornal, de Belém do Pará, registra a sua chegada
à Capital paraense, em 27 de novembro de 1900, anotando que ele pretendia
demorar-se alguns dias em casa do Sr. Luiz Soares, seguindo depois para Nova
York.
[iv]
GAZETA DE NOTÍCIAS, Bahia, 4 de abril de 1905.
[v]
BULLETIN OF THE INTERNATIONAL BUREAU OF THE AMERICAN REPUBLICS, Vol. XXX,
January – June, 1910. P. 66.
[vi]
The Elbert County Tribune, Volume 26, Número 1, 5 de agosto de 1910, disponível
em https://www.coloradohistoricnewspapers.org.