O VELHO “GENERAL”¹
(Sertão de Alagoas)
Ascendino Christo
Tarde quente de verão. Sobre a
terra escaldante desdobra-se o imenso pálio de céu rubro.
No poente, há como chamas gigantescas
de uma fogueira monstruosa, onde mergulha incandescente o disco solar. Há
espalhados pela campina, na copa das árvores altaneiras, no escuro da mataria
densa, nos picos alvadios ou negros das montanhas, faixas, rastilhos, toques de
luz vermelha. É a magnificência do crepúsculo na selva tropical.
Calmo e pesado, tênue sopro agita
a plumagem rala de árvores despidas. Nem força tem para suspender o pó
ressequido e ocre da tortuosa estrada. Há nervosos estertores de gravitos e
vagens secas a crepitar em estalidos irritantes ao calor intenso.
A longa estrada riscada em
sulcos paralelos, pontilhada de brilhantes seixos, vai pouco a pouco imergindo
na sombra plúmbea, guarda avançada da noite estrelada.
Três horas a fio, cavalgando
suarento tordilho, coberto de pó e enfado, já sem prazer na visão da natureza
esquelética, vi passar desde minha partida de Meirús. E a montanha da estrada
em fogo fazia-me esgotar a esperança de um descanso perto de breve entrada na
linda cidade de Pão de Açúcar.
Agora percorria a baixada que
antecede o Alto da Bela Vista, o ponto de onde se descortina vasto horizonte de
variedade empolgante, desde a cidade ao sopé, à praia arenosa, ao rio azul e
veloz até as montanhas em caprichosos recortes na margem oposta.
Caminheiro prostrado de jornada
de muitos sóis e de muitas luas, combalido e sedento de água refrigerante, que
ali chega, se tiver ainda forças para dilatar as pálpebras cerradas pela morte
das energias e olhar o deslumbrante panorama: os montes, os vales, cultivados
campos, a casaria avermelhando, de telhados novos, paredes alvas de cal, e o
rio em filete de cristal ao fundo – caminheiro que ali chega, corre, voa, galga
a légua que o separa da cidade, do rio, sem cansaço, sem alquebramento.
- Di-lo o povo na sua adoração
justa da natureza rica e emocionante.
Também eu sentia ânsia de
transpor o vale que me afastava da mágica culminância. Também sentia pruridos
de rever o já muito conhecido quadro tão grato aos meus olhos de adolescente! E
esporeava o manso tordilho, e atirava ao ar interjeições de alegria,
onomatopeias de animação.
- Êh! ... Êh! ...Tordilho,
vamos. É ali a Bela Vista.
***
***
Transporto o alto, para trás a
íngreme e enfadonha ladeira, eu era mais forte: vira a cidade amada e o rio
querido. Uma grande alegria repassada de alívio ungia min’alma, o coração
pulava de contentamento. Em breve alcançara um carro de boi, morosamente estadejando
para a cidade. Chiava pesaroso, num concerto rústico, gemendo ao peso da carga
arrumada em pilhas.
E lá ia o tosco veículo, ora
chorando em lamentos lancinantes a sorte da craibeira do eixo, meio carbonizado,
reluzente, pelo atrito constante dos cocões — ora soluçando trôpego, cansado
já, empoeirado do caminho das estradas. Guinchava, às vezes, acelerando a
pesada andadura pelo bárbaro ferroar aos mansos bois.
Sempre monótono, cantando
alegrias ou entoando nênias, jamais calado, vai pelos caminhos ingratos até o
repouso, onde descansa do sol em pino à sombra escassa de alguma árvore,
pendido o cabeçalho ao chão. Só ai para de cantar, só ai cessa a música
esquisita que atirou aos ares durante horas sem fim.
***
***
Contou-me o carreiro —um rapagão sadio e forte,
sempre pregado à palmatória do seu
carro, alegre, jovial, cantarolando loas ou imitando, às vezes, passarinhos em
assovio fino, estrídulo: - contou-me o carreiro com lágrimas nos olhos:
— “O meu melhor boi chamava-se
“General”. Era um animal de estimação: coiceiro
afamado, nenhum outro o vencia no seu posto. Fazia gosto ver como ele escorava a dianteira numa descida ‘a pique’. ...
“Viajara muito e não esquecia
atoleiro onde passasse uma vez, nem ignorava precipício a evitar. Do rio – de
Pão de Açúcar – até vinte, e trinta e mais léguas, na ‘redondeza’ ele fora, por
longos anos, o melhor, o mais valente boi de carro. Atravessara valados,
galgara serras e palmilhara alagadiços; à chuva, ao sol causticante; de dia, à
noite; à luz nitente, na treva horrífica; sempre aquilo: manso, pronto ao
constante viajar, liso e belo, de ‘pelo lustroso’, como se a alegria de viver
lhe mudasse em gozo a agrura do labor. Daí a sua alcunha de ‘General’. Como um
bravo que foi teve sua ferida de honra e de reforma.
‘Foi ao descer da enorme e
maldita ladeira do Parujé. Uma dianteira
era um velhaco e manhoso garrote, ainda enfezado e selvagemente forte. O ‘alma
do diabo’ tirou em disparada ladeira abaixo. Em frente, abria-se o chão num
escancarado grotão, atraindo o carro, a carga os bois e eu. O outro dianteira era manso, porém, fraquinho,
perdeu a ação: deixou-se arrastar na corrida infernal. O momento era terrível:
mais um arranco do garrote, e estaríamos perdidos. Foi quando “General”, aquele
bravo “General”, num esforço inaudito, ouvindo os meus scio! ... Scio! ...desesperados, sustou a carreira danada em que
íamos e, desviando o carro do precipício com extraordinário sacrifício,
arrastou-nos devagar até ao sopé do despenhadeiro.
‘No lombo roxo do Parujé, porém
– concluiu abatido, o carreiro – ficara-se com um mugido de ‘cortar coração’,
uma das suas unhas presa ao vale por uma fita rubra de sangue.”
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Publicada no jornal CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro, 25 de abril de 1909.
Desenho de Percy Lau.
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