Manoel Joaquim era um senhor que morava em frente a nossa casa, no pequeno povoado de Limoeiro, município de Pão de Açúcar. A cabeça encanecida revelava avançados anos em sua vida de muito trabalho e sacrifícios. Carpinteiro por ofício e agricultor por necessidade, estava em seu segundo casamento, cujos filhos mais novos eram mais ou menos da minha idade.
Na sua oficina, instalada na própria residência, eu passava horas e mais horas a observá-lo na prática da sua arte. Muitas vezes os meninos o ajudavam em alguma tarefa. Naquele tempo as crianças, enquanto não estavam na escola, ajudavam os pais nos trabalhos da família. Nesse caso, em particular, por vezes via os meninos de seu Manoel ajudá-lo em alguma tarefa mais leve. Como naquele dia em que, para serrar ao meio uma enorme tora de madeira, contava com o apoio de um dos seus filhos. Apoiando o pau sobre um cavalete, seu Manoel manobrava a enorme serra na parte superior. Em baixo, Luiz segurava a outra extremidade, apenas aprumando o corte sobre a linha traçada a lápis. Eu e outras crianças, por volta dos nossos oito ou dez anos, ficávamos a observar o pó de serra cair sobre o chão de tijolo batido na enorme sala de visitas.
Seu Manoel, de vez em quando nos explicava um ou outro detalhe daquele trabalho. Em dado momento, enquanto nos via apalpar aquele pó de serra que precipitava a cada golpe dado sobre a madeira, comentou:
— Estão vendo, meninos, esse pó de serra aí? Muitas vezes, na Seca de 32, tive que comer isso porque não tinha dinheiro prá comprar farinha.
Por um instante paramos, estarrecidos. Seu Manoel falava da maior de todas as Secas vividas pelos nordestinos no Século XX. Pior do que aquela, só a Seca de 77, ainda no Século XIX.
Minha memória me leva a outro episódio.
Eu e um de seus filhos estávamos brincando quando, de repente, seu Manoel insurgiu na pequena sala. Tinha o semblante grave e ameaçador. Dirigiu-se ao filho em voz alta, alegando ter tomado conhecimento de que o mesmo cometera algum malfeito, coisa séria, que ele não tolerava e que, para tanto, lhe daria o merecido castigo.
De súbito, deixamos os brinquedos e nos voltamos para ele. O menino olhava para o pai aterrorizado. Nos olhos a expressão de medo. O pai prosseguia no ritual atemorizante: levou as mãos à cintura, desafivelando a velha cinta de couro cru. Quando já se dispunha a executar a sentença, num gesto desesperado, postei-me entre eles e supliquei:
— Seu Manoel, não bate nele não...
E o fiz sem qualquer esperança de ser atendido. Afinal, os pais daquele tempo recorriam a esses métodos com frequência com a maior naturalidade. Mas, qual não foi a minha surpresa quando, tocado pelas minhas palavras de menino e por um sentimento que eu, naquela idade não podia discernir, vi-o baixar a mão que ameaçava o meu colega e, soltando-o, anunciou:
— Hoje você escapa! Só não vou te dar uma surra daquelas porque seu amigo me pediu.
Deu de costas e saiu rapidamente. Refeitos do susto, logo voltamos à nossa brincadeira.
*** *** ***
Hoje, refletindo sobre aquele gesto, fico impressionado de como aquele homem rude, de hábitos tão conservadores, tenha tido uma atitude daquelas. Convenço-me de que ele o fizera não pelo simples fato de lhe ter pedido. Afinal, ele não devia qualquer satisfação a um pirralho como eu. Tendo mais a acreditar que evitou castigar o filho na minha presença para não constrangê-lo. Bater no filho para impor a sua autoridade de pai era uma coisa; surrá-lo diante de um parceiro de brincadeiras era outra.
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