Monteiro Lobato
O
Dr. J. C. Alves de Lima[i]
vem de publicar um precioso livro de recordações de homens e coisas do seu
tempo.
O
seu tempo consta de 74 anos que já viveu neste mundo sublunar na mor parte
transcorridos em viagens pelo estrangeiro e estadias na América do Norte, onde
foi cônsul do Brasil por mais de três décadas. Está claro que tem muito o que
recordar.
Encontros
com homens célebres ou que vieram a sê-lo, incidentes de viagem, ideias que
ocorrem pelo caminho, anedotas, sugestões aos nossos governantes, mil coisas.
Gaveta
de sapateiro, chama o povo às miscelâneas — porque há de tudo numa gaveta de sapateiro,
menos sapatos. Qualquer memória de homem é gaveta de sapateiro — é riquíssima
em casos como os do Dr. Alves de Lima, homem andejo, metade por natureza,
metade por dever de ofício.
Não
se trata de um escritor. O Dr. Alves de Lima não “liga” muito à língua, nem ao
estilo, nem sequer à gramática. Não tem tempo. E como passou a maior parte do
tempo no estrangeiro, onde a língua portuguesa é tão morta quanto a hebraica,
escreve melhor em inglês ou francês do que na língua própria.
Mas
justamente o despretensioso alinhavado da sua prosa, menos escrita do que
conversada, dá grande sabor às suas confidências — e por ela nos vamos embora,
mais agradavelmente do através de pomposos estilos catedralescos, onde tudo são
lambrequins logotécnicos de difícil ingestão e pior digestão. Gênero conversa
ao pé do fogo – conversa amiga e bonacheirona de quem, por muito vivido, se
convenceu de que a vida não passa de uma... conversa.
O
caso de Dona Maroca[ii],
por exemplo. Não tem, na aparência, a mínima importância, simples caso de
“passagem” que é. Mas não deixa de provocar reflexões, tanto mostra como as
Marocas dirigem o mundo, dirigindo os homens — e que homens! Tribunos como
Silveira Martins, imperadores como D. Pedro II.
—
Eu sou o jequitibá da floresta. O machado que há de derrubar-me não se forjou
ainda, tonitruava ao parlamento, batendo no peito largo o Mirabeau
rio-grandense.
De
fato, só depois de forjado o machado da República, é que o jequitibá aluiu. No
entanto, uma Dona Maroca o fazia dúctil como uma vara de matambú.
Não
era Dona Maroca nenhuma mulher de truz, das que atravancam a história com os
seus espaventos, ao tipo das Dubarry, das Hamilton, das Domitillas, das Lianch.
Boa dona de casa, doceira insigne talvez, experiente em chás e semicúpios com
que curava as macacoas do seu marido, Soares Brandão[iii],
bela figura de Senador do Império.
Soares
Brandão era Presidente da Província das Alagoas, isto nos últimos anos da
Monarquia. Numa viagem que com sua esposa fez ao Rio São Francisco, parou na
pequena cidade de Penedo, onde recebeu a visita do humílimo vigário local.
Conversa vai, conversa vem, dona Maroca pergunta ao padre qual a coisa que mais
desejava no mundo.
—
Ser cônego, dona Maroca. Se me pilho cônego, acabo o homem mais feliz da terra.
—
Pois será cônego, respondeu dona Maroca e, voltando-se para o marido, intimou-o
a operar o milagre.
Soares
Brandão relutou. Fez ver como era D. Pedro II pontilhoso nesse pormenor,
exigindo condições e desatendendo a pedidos.
—
Com jeito tudo se arranja, retrucou dona Maroca, que já previa o advento da
nossa república do arranjo. Na Corte, tecerei os pauzinhos.
E
teceu — que paus! Meteu na dança, logo de cara, o jequitibá da floresta, nesse
ano ministro do Império.
—
Preciso de um cônego, senhor Ministro. Tenho em Penedo uma boa massa de cônego
e preciso que Sua Majestade me faça presente de um.
Silveira
Martins coçou a barba. Tantos problemas sobre a mesa e ainda por cima aquele
cônego de encomenda! Mas não podia recusar-se a um pedido de dona Maroca – tão
boa criatura, tão amável! — e levou ao imperial despacho a proposta conegadora
do humilíssimo vigário do Penedo.
O
Imperador, que tudo via e cheirava, impugnou a proposta, que não vinha com os
requisitos legais. Não era caso e o papel foi posto de parte.
Silveira
Martins insistiu e, no próximo despacho a proposta, sem alteração nenhuma,
reaparecia. Reapareceria para sofrer nova preterição imperial. E foi um jogo.
Dona Maroca a não desistir, o jequitibá a insistir e o imperador a resistir.
Na
terceira ou quarta tentativa, D. Pedro cochilou e, apôs o seu ambicionado “P”
grande sobre o renitente decreto.
Estava
elaborado o cônego de dona Maroca, uff! Silveira Martins se apressou em passar
pela rua Marquês de Olinda, onde a boa dama residia, e já do portão lhe foi
gritando:
—
A sua receita está aviada! Custou, mas saiu uma beleza de cônego.
A
excelente senhora não ocultou uma infantil alegria, e sem tardança telegrafou
ao padre de Penedo.
Foi
uma bomba, como diria o Paulo Setúbal. O excelente padre duvidou dos seus
olhos, como diria um romancista old style,
e depois saiu, agitadíssimo, a pernejar pelas ribanceiras do rio, delirando de
contentamento.
—
Estou cônego! Estou o Senhor Cônego!, exclamara às pedras, às águas, às
árvores, às gentes atônitas. Cônego, e dos bons, ouviram?
Os
penedenses reuniram-se em grupos ressabiados, cheios de dó e vaticínios.
— Enlouqueceu,
o pobre? Eu bem andava notando qualquer coisa...
Mas
o padre exibiu o telegrama de dona Maroca e a alegria foi geral. Penedo, enfim,
dava um cônego! Viva Penedo! E tudo acabou em generalizada alegria de coração,
exceto para o pedreiro livre local, que amuou.
Não
é, como se vê, um transcendente episódio histórico, nem as demais anedotas que
recheiam o livro do Sr. Alves de Lima se medem por padrão mais alto. Mas é
humaníssimo e mostra com as donas Marocas dirigem a sociedade. Se fosse
possível uma investigação a fundo sobre todos os Atos governamentais, talvez
assombrasse ao sociólogo o número dos que embricam, na origem, em caprichos de
mulher. Capricho, desejo ou ódio. É estudo que merecia ser feito, a
determinação do quantum de parte
feminina nos negócios públicos.
Psicólogos
há que o avaliam em 70 %. Outros, em mais. Se as paredes, que têm ouvidos,
também tivessem bocas, se falassem as paredes das alcovas...
Os
governos se agitam. As saias os conduzem.
______________
Extraído
do jornal carioca A MANHÃ, 19 de dezembro de 1926.
[i]
José Custódio Alves de Lima
nasceu em Tietê, Estado de São Paulo a 7 de setembro de 1852. Filho do
comendador Antônio Manuel Alves de Almeida Lima e de Maria Leopoldina de
Almeida Lima. Estudou em São Paulo e no Rio de Janeiro e, em 1873, foi para os
Estados Unidos, onde fez o curso de Engenharia nas Universidades de Cornell e
Syracuse. Terminado o curso, casou-se com Ella Barber Alves de Lima nasceram os
filhos: Frederico; Gay; Antônio; Paulo e Maria. Foi cônsul do Brasil em Havana
e, após a Grande Guerra (1ª Guerra Mundial), foi cônsul geral do Brasil nos
Estados Unidos. Faleceu no dia 2 de fevereiro de 1938. Fonte: Correio
Paulistano, 3 de fevereiro de 1938, p. 4.
[ii] Maria Anna Paes Barreto. Nascida em 21 de julho de 1847. Era
sobrinha-neta do do Marquês do Recife, o famoso Morgado do Cabo. Faleceu no Rio
de Janeiro no dia 24 de julho de 1917. Fonte: O Paiz, RJ, 25 de julho de 1917.
Foi sepultada no Cemitério São João Batista no dia 25 de julho de 1917. Saíu o
féretro da Travessa Marquês de Paraná, nº 23. Tinha 70 anos. Fonte: Gazeta de
Notícias, RJ, 26 de julho de 1917.
[iii] Filho
de Francisco Pedro Soares Brandão e Maria Rita Gonçalves da Rocha, nasceu em Jaboatão, Pernambuco, a 31 de outubro de 1839. Formou-se
pela Faculdade de Direito do Recife em
1861, após o que abriu escritório de advocacia. Em fins de 1866, foi nomeado ao
cargo de juiz de órfãos de Recife, que se
manteve até 1872. Na vida pública, foi deputado provincial (1864
e 1869), deputado geral (1878-1881), presidente de província (de
Alagoas, Rio Grande do Sul e São Paulo), ministro dos Negócios Estrangeiros e Senador do Império do Brasil,
do qual foi escolhido, na vaga do senador Barão de Pirapama, em 29 de outubro de 1882.
Foi empossado em 22 de maio de 1883 até o ano 1889. Quando do advento da
República, foi morar no Rio de Janeiro, abrindo escritório de
advocacia, onde veio a falecer no dia 1º de setembro de 1899. No curto período
em que foi Presidente da Província de Alagoas (de 11 de março a novembro de
1878), visitou Pão de Açúcar, em viagem que demandava a Cachoeira de Paulo
Afonso.
Só tenho a agradecer a quem postou essa preciosa reminiscência. Meu tio-avô José CUSTÓDIO e, sobretudo, seu semblante preservado pata posteridade em foto. Eis que por mim e demais familiares esquecido. Estive em SYRACUSE e visitei nossa empresa de CAFÉ PREMIUM a DELIMA COFFEE ainda firme e modernizada pelos Barber e seus respectivos descendentes, PAUL DELIMA especialmente. Há que se cultivar tal memória, valorizar tal ENREDO da vida real.
ResponderExcluir