Álvaro Antônio Machado*
Adolescente, eu fazia, no final da
década de 1960, a descoberta das belezas das festas da minha Pão de Açúcar e me
encantava, particularmente, com os “carnavais” da minha terra. Isso mesmo,
“carnavais”, porque no mesmo ano eram duas festas carnavalescas: uma denominada
como tal, que acontecia no mesmo momento em todo o País; e outra chamada
“micareme”, esta sim, uma entusiasmada festa carnavalesca que, pela animação e
pela participação, parecia acontecer só em Pão de Açúcar ou, no mínimo, fazia
da “terra de Jaciobá” a capital dessa folia fora de época.
O que me intrigava na micareme era sua
proximidade com o carnaval propriamente dito. Quarenta dias depois das
brincadeiras, dos batuques e da bebedeira da primeira festa, e a cidade já caía
de novo na folia. Sim, porque a micareme começava logo após “romper a aleluia”,
às vésperas do Domingo da Ressurreição, e se estendia até a madrugada da
quarta-feira seguinte. Com uma agitação, um contentamento, uma presença popular
que parecia fazer do carnaval uma mera preparação para a micareme.
É fato, também, que no carnaval havia
algo que me indispunha e era motivo de mil recomendações de cuidados pelos meus
pais: o entrudo, a brincadeira que dominava a manhã do domingo. Ela se
caracterizava por grupos que circulavam pela cidade em busca de jovens ou
adultos desavisados ou desprevenidos, para arrastá-los, sobre os ombros e em
meio a enorme algazarra, para um banho forçado nas águas do “velho Chico”,
jogados n’água da forma como estavam vestidos.
Afora o entrudo, o carnaval era singelo
enquanto a micareme se sobressaía como o grande festejo carnavalesco. Somente
muito tempo depois encontrei uma explicação lógica para o estrondoso sucesso da
micareme em Pão de Açúcar, que atraía visitantes e foliões de toda a redondeza.
É que Pão de Açúcar, tal quais as cidades ribeirinhas do São Francisco, sempre
manteve uma tradição de parir músicos de qualidade que, também no carnaval,
faziam sucesso dentro e fora do município com suas bandas. Assim, elas eram
muito disputadas no período do carnaval para abrilhantar a festança em outras
cidades. Dessa forma, a rapaziada de “Seu” Nozinho, Brandão, Bubu, Irmãos Ramos
e vários outros, cada qual no seu tempo, geralmente saía de Pão de Açúcar para
tocar em outros lugares no carnaval e durante a micareme tocava em casa,
abrilhantando a grande folia da terrinha.
Aos poucos, porém, essa tradição
perdeu-se no tempo e restou apenas o carnaval propriamente dito, comemorado em
Pão de Açúcar com bem menos destaque que antes da importação das bandas de axé
e da substituição do frevo e das marchinhas por ritmos modernos
descaracterizados.
Outrora era encantador chegar a época
carnavalesca e naquela cidade interiorana tão longínqua, como num passe de
mágica, surgirem os blocos que me embeveceram a infância e marcaram minha
adolescência: Los Panchos, Bola Preta – precursor do Bola Branca e do Bola
Vermelha, Os Cangaceiros, Boi Fubá, Os Bárbaros, A Boneca, As Lavandeiras, O
Barracão, Dois Unidos, a Chaleirinha de Meirus; e as “escolas de samba”
Sambistas de Urumarys e CIT (“Companhia Inimiga do Trabalho”). A ‘Sambistas de
Urumarys’, em que eu figurava, literalmente, balançando o ganzá, trazia no nome
uma homenagem aos primeiros habitantes da terra, os índios urumarys, de afinada
sensibilidade poética e que deram o primeiro nome ao lugar: Jaciobá, que em
tupi-guarani significa ‘espelho da lua’.
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Grupo de foliões, tendo a frente Zé Negão (pandeiro) e João de
Santa (banjo) |
As brincadeiras de rua, com direito a
desfile na principal avenida da cidade, a Bráulio Cavalcante, onde o Rei Momo a
tudo observava do seu palanque imperial, começavam ao cair da tarde e se
estendiam até perto das onze horas da noite. Nesse período, enquanto uma banda
tocava no centro da avenida fazendo a grande festa popular, uma tradição era
mantida: a ‘visita’ dos blocos a residências previamente avisadas, onde os
proprietários recebiam os foliões com bebidas e tira-gostos, uma forma
divertida e inteligente de beber e comer sem pagar, melhor que isso,
retribuindo a gentileza com a animação carregada pelas marchinhas e frevos
cantados pelos blocos.
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O Sr. Roberto Alvim no carnaval de 1968. |
A cada ano os blocos exibiam fantasias
distintas, mas sem perder a originalidade que caracterizava cada um deles, como
os chapéus mexicanos de “Los Panchos”. Dentre todos os blocos e dentre todos os
foliões, um indivíduo sempre se destacava: Roberto Alvim. De longe, para mim, o
mais fidedigno folião da minha terra e da minha época. Ele parecia viver
‘esperando o carnaval chegar’. E quando chegava, carnaval ou micareme, “seu”
Roberto encarnava o autêntico folião: galhofeiro, dançarino, divertido,
detentor de contagiante alegria e exibindo-se sempre fantasiado com seu
martelinho de plástico brandindo nas mãos e nas cabeças dos amigos.
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Grupo de foliões, tendo a frente Zé Negão (pandeiro) e João de
Santa (banjo) |
Terminada a maratona de visitas, e já
com os integrantes devidamente ‘calibrados’ pelas distintas bebidas ofertadas,
era o momento de grande parte dos foliões (ou, pelo menos, os que ainda se
punham de pé) brincar o carnaval no Iate Clube Pão de Açúcar, onde uma banda
animava as quatro noites de folia.
E os dias de folia voavam, como sói
acontecer nos momentos felizes de nossas vidas. O alvorecer da “quarta-feira
ingrata” levava a banda que animava o carnaval do Iate Clube a sair tocando
além dos muros da agremiação, puxando o último cordão de foliões pela “Rua da
Frente”, como se tentassem evitar o acorde final de ‘Vassourinhas’. A despedida
era coroada com os foliões menos alquebrados mergulhando nas águas do ‘velho
Chico’, como se procurassem uma purificação para voltar à lida do cotidiano e
esperar, ansiosos, o futuro carnaval ou a próxima micareme...
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Bloco Los Panchos |
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* Álvaro Antônio Melo Machado,
médico formado pela Universidade Federal de Alagoas; Sócio-efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas; membro da Academia Alagoana de Medicina e da
Academia de Letras de Pão de Açúcar.
Muito obrigado, querido amigo Etevaldo, pela reprodução e minha alegria pela feliz recepção a essas memórias da terrinha que nos são tão caras. Grande abraço.
ResponderExcluirÁlvaro Antônio
Estórias fantásticas da cidade e fotografias raríssimas que ratificam a escrita.
ResponderExcluirPaulo Henrique Resende