Jorge de Lima[i]
Antes de Maceió ser capital do
Estado, a cidade de Alagoas teve esse privilégio. Alagoas – capital Alagoas;
Alagoas – capital Maceió; os nomes das duas capitais já vinham com a história
das cidades que brotam d’água. Maceió – “o que tapa o alagadiço” ou
simplesmente Alagoas com a sua “Paranan-guera” – o que foi mar, ou com a sua
“Para-i-guera” – ou “Paraíba antigo”, tudo ali conta as origens, o seu mergulho
de milénios, até emergir, libertar-se do mar, ser lagoa, corôa, terra firme:
Maceió enfim ou “o que tapa o alagadiço”.
Os nomes mesmo dos arrabaldes,
das ruas, dos sítios são nomes pitorescos molhados d’água: Cambona, Poço,
Levada, Aterro de Jaraguá, Aterro do Cemitério, Olhos D’Água, Bebedouro. De sorte
que a mudança da capital para Maceió já representa mesmo, etimologicamente, um
progresso: a terra aflorou, tapou-se o alagadiço, surgiu Maceió.
O homem que pegou em armas para
que a mudança não se operasse não concorreu, porém, com o holandês a fim de
conquistar solo, aumentar a cidade, consolidar o seu terreno de treme-treme. O
mangue é que anonimamente, milênios e milênios mandou raízes, distribuiu
sementes, conquistou terra para a sua pátria das Alagoas.
A terra continua ainda misturada
à água, cortada de riachos, de cambonas, rodeada de lagoas, por isso é uma
terra que me agrada porque tem a sedução das terras das ilhas distantes, das
erromangos com seus coqueirais, com a sua ventania constante e seu mar furioso.
É a terra mais bela do Brasil, pobrinha com seus ricos lençóis d’água
subterrâneos, com seus prováveis lençóis de petróleo.
Maceió possui excelente posição
topográfica, com seus três planos que a dividem em três bairros característicos:
Maceió, Jaraguá e Jacutinga ou Farol.
Vista aérea de Maceió, 1936. |
Do Jacutinga divisam-se Maceió e Jaraguá e lá longe os canais e a lagoa longínqua. Canoas veleiras cortam as águas, o descendente de caetés apanha o sururu no fundo da lagoa. O farol, mal chega a noite, lambe aquelas terras alagadas com uma faixa imensa branca e vermelha. Maceió vai recolher-se, vai dormir. A cidade dorme cedo, não tem hábitos noturnos.
Lá está a igreja do Rosário, lá
está a Matriz, lá está a igreja dos Martírios que Roy Nash, protestante, achou
tão bonita que a botou em seu livro errado e bom “The Conquest of Brazil”.
Nas terras de Satuba – “terras de
caranguejo”, o Mundaú transbordou, as águas subiram nos trilhos da Great
Western: o trem vem atrasado, vem de longe, de “Cinco Pontas”, vem cansado.
A história da Great Western, a
zona dos quatros Estados que ela atravessa, o home que nela viaja, os
dirigentes ingleses, o caboclo, o cossaco (trabalhador da linha), o senhor de
Engenho vestido de guarda-pó, o usineiro “nouveau-riche” arrebentado e quase
sempre ridículo, o judeu cobrando a prestação de gare em gare, os banguês das
margens devorados pelas usinas e a Great Western canalizando todas aquelas
economias para o estrangeiro, tudo isso dava um formidável ensaio, um romance
extraordinário que nenhum nordestino quis ainda escrever. Porém, Maceió é isso,
somente? Alagados, mangues, caetés, Great Western? Não. Maceió tem fábricas,
tem operários, tem petróleo, tem latifúndios, tem politiqueiros, tem substância
para uma grande história, para uma grande tragédia, para uma grande glória,
para a Paz, para a Paz.
As condições mesológicas
desfavoráveis poderiam modificar o homem daquelas plagas, nivelá-lo ao plano da
terra sem elevações, quase ao nível do mar. Não conseguiram, entretanto: o
maceioense é sagaz, vivo e trabalhador, como todo nordestino. De uma jogralidade
inexcedível, nas suas festas de São João, de Natal, na Levada e em Bebedouro;
no Carnaval, em qualquer festejo, enfim, ele se apresenta com a velha alma de
caeté amante dos folguedos, engraçadíssimo.
Mesmo às margens das lagoas, na
zona do sururu, o home não é só o empalemado roedor de tijolo, triste e vencido
pela lama. O coco (dança tradicional da região), o toré, o reizado, a chegança,
têm mestres extraordinários nas ilhas, nos canais e nas margens das grandes
lagoas.
Uma vez apreciei um toré organizado
por mestre João Pedro, que nunca me saiu da memória, desde a infância querida
que os anos não trazem mais. Esse toré entrou por Bebedouro, com os seus reis
preto e caboclo. Tinha uma extraordinária rainha índia, com uma coroa de
espelhinhos e manto de flanela vermelha, trazia óculos escuros e bigodes e
costeletas grudados com goma de farinha do Reino. Era lindíssima a Rainha. Os reis
prendiam moleques, entregava depois os reféns a troco de níqueis. No fim, os
pretos são sempre vencidos pelos caboclos. Ainda hoje essa folgança tradicional
termina sempre com a vitória dos nativos que, afinal, nos tempos de hoje, são
todos eles, tão misturadas andam as três raças naquelas regiões.
A jogralidade é característica tão
forte do maceioense que, aos tempos da revolução de 30, ainda as forças de
Paraíba demoravam na capital e já o povo promovia passeatas, com dichotes e
grossa pandega, dando, imediatamente, ao acontecimento, um aspecto de farra
carnavalesca.
Pouco dias depois, o guerreiro
Juarez Távora, discursando para um grupo de curiosos, em frente ao palácio dos
Martírios, foi aparteado por um ouvinte: - General, aqui continua tudo na mesma
mamãezada!
Achei a expressão - “mamãezada” -
de uma felicidade de interpretação extraordinária. “Mamãezada” – coisa entre
mamãe e filho, briga sem importância, fechar os olhos, passar esponja, está
tudo acabado”! Para que inimizade entre os caboclos da mesma tribo?
A forte humanidade, o poderoso
vínculo de solidariedade e de amor que assinalam o caráter daquela gente,
fazem-na a mais doce, a mais acolhedora, a mais amiga nação do Nordeste.
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Transcrito da revista Carioca, nº
18, 22 de fevereiro de 1936. http://memoria.bn.br/DocReader/830259/1081
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