Por Etevaldo
Amorim
Theodoro Sampaio |
Dentre as várias expedições organizadas pelo Governo Imperial para analisar as possibilidades de melhoria na navegação no rio São Francisco, destaca-se a Comissão Hidráulica.[i] Constituída em 5 de janeiro de 1879, pelo Conselheiro Cansanção de Sinimbu[ii], à frente do 27º Gabinete Ministerial, e comandada pelo engenheiro americano William Milnor Roberts. Dela fazia parte o engenheiro Theodoro Sampaio.[iii]
Tinha, então, vinte e
quatro anos, e há apenas dois se formara em Engenharia Civil pela Escola
Politécnica do Rio de Janeiro, conhecida como “Escola Central”.
No dia 17 de agosto de
1879, por volta das seis horas da manhã, partia do Penedo, a bordo do vapor
Sinimbu, com destino a Piranhas, último ponto do trecho navegável do Baixo São
Francisco, “viagem que ordinariamente se
faz em dois dias, pousando-se na cidade de Pão de Açúcar, que se alcança antes
do pôr do sol.”
Naquele mesmo dia,
Sampaio e os demais membros da comissão chegaram a Pão de Açúcar e logo
saltaram para conhecer a cidade. Seu relato é breve, mas preciso:
“...
atravessamos a pé o largo lençol d’areia que a precede e percorremos-lhe as
ruas retilíneas, planas, marginadas de edificações humildes e sem elegância.
Nenhum edifício notável se descobre, nem mesmo a igreja que, aliás, oferece
melhor aspecto vista de longe.”
Pão de Açúcar-AL, vendo-se, à esquerda, o "largo lençol d'areia". Foto Marc Ferrez, 1875. |
“Pão de Açúcar não
oferece de notável senão a sua paisagem pitoresca, que a montanha cônica que
lhe dá o nome aformoseia, e o perfil azulado da serra dos Meirus, duas léguas
longe, torna quase encantador. ”
Retornando já tarde ao
navio, neste pernoitaram para, no dia seguinte às 7 horas da manhã, “apesar da abundante chuva que caia”,
continuar a viagem até chegar a Piranhas às 10 horas.
Três horas depois chegava
a Piranhas, que então pertencia ao Município de Pão de Açúcar, sendo a Comissão
recebida no porto pelos técnicos que iniciavam a construção da estrada de
ferro, chefiados pelo engenheiro Reynaldo Kruger.[iv]
Encontraram ali uma
população majoritariamente composta de mulheres e crianças, posto que os homens
se achavam distribuídos ao longo da estrada que se construía. E assim se fazia
a despeito das péssimas condições topográficas do lugar, deixadas de lago pela
forte influência do Conselheiro Sinimbu, alagoano e Ministro do Império, que
pleiteou a construção da estrada justamente para mitigar os danos causados pela
seca de 1877, cujos efeitos se fazia mais sentir justamente naquele momento.
Estrada de Ferro Paulo Afonso_km 26, em construção. Foto Ignáco Mendo, 1880. |
Esse fato não passou
desapercebido a Theodoro Sampaio, que chegava “exatamente na ocasião em que se distribuíam os socorros pela população
faminta no barracão próximo à estação da estrada de ferro. O aspecto dessa
gente não negava os sofrimentos por que tinham passado. As mulheres e as
crianças macilentas e com as roupas em farrapos, assentadas pelo chão, traiam
um sofrimento que os primeiros socorros não lograram totalmente extinguir.
”
Theodoro Sampaio manuseando um teodolito. |
Após a visita à Cachoeira
de Paulo Afonso, Theodoro Sampaio publicou na revista ILUSTRAÇÃO DO BRASIL –
Ano II – Nº 14 – 1880, um artigo intitulado:
A
CACHOEIRA DE PAULO AFONSO – IMPRESSÕES DE VIAGEM
Não sei, meu amigo, como
traduzir-lhe em nossa linguagem, tão pobre e mesquinha, as impressões
variadíssimas, os sentimentos desencontrados, que experimentei em face desses abismos
extraordinários onde se precipitam as águas volumosas do S. Francisco.
- A Cachoeira de Paulo
Afonso! Quem, no Brasil, não a conhece, mas quão poucos a tem visitado!
É, pois, fácil de
compreender com quanto afã, com quanto ardor seguíamos nós através daqueles
tabuleiros estéreis, pedregosos, tostados pelo sol abrasador do estio em
demanda da famosa catarata.
Esquecíamos tudo: a
escassez d’água, a ruindade dos caminhos, a intensidade do calor, e mais que
tudo, a “excelência” das cavalgaduras de nossa montada, as mais próprias para
curar a monomanias de viagem.
Havíamos partido do porto
de Piranhas, onde cessa completamente a navegação do Baixo São Francisco;
ganhamos o planalto, e paralelamente a estrada de ferro, agora em construção,
fomos pousar depois de dois dias de marcha na Estação da Pedra, quatro ou cinco
léguas distante da cachoeira.
Como são tristes estas
terras onde o céu não chove, e onde a vegetação, sem viço, jaz perdida e sem
conforto!
Piranhas. Habitações precárias de retirantes e empregados na construção da Estrada de Ferro. Foto Ignácio Mendo, 1880. |
Já lá vão três anos que a
última gota de chuva se desprendeu das nuvens por sobre essas paragens, e até
hoje o céu, conquanto nublado, coberto de cúmulos e nimbos prometedores, lá
está ainda a negar uma gota de água, a essa terra sequiosa e infeliz. Só o
cardo medra nestas paragens inóspitas, e, esguio, viçoso, espinhento e
inalterável ergue os braços para um céu indiferente, desapiedado!
Diante de tanta aridez, o
povo fugiu. Fugiu ou pereceu toda a criação dos campos, os pássaros, os
próprios pássaros sumiram-se, desapareceram também; uma tristeza, uma monotonia
esmagadora, imperam por toda parte.
Tal é o aspecto da região
que atravessamos em caminho a Paulo Afonso.
Saímos da Pedra pela
manhã, e só depois de quatro horas de péssimos caminhos, avistamos ao longe as
planícies onde corre o S. Francisco, de que nos havíamos apartado desde
Piranhas.
Que planícies niveladas,
que tabuleiros extensos, onde a custo rompem a monotonia alguns serros azuis
nos confins do horizonte, alguns outeiros isolados no imenso tapete verde-negro
das “caatingas”! Depois o rio, como uma enorme fita prateada, retalhando o
horizonte, em meio desaparecendo estão os sítios onde vai formar as cachoeiras.
Estas distavam de nós uns três quilômetros apenas, devíamos já ouvir-lhe o
bramido atroados das catadupas, e avistar também o nevoeiro denso que se lhe
ergue dos abismos. Tudo isto se nos passou desapercebido, por um estado
particular da atmosfera.
Estrada de Ferro Paulo Afonso_km 3,vendo-se Canindé Foto Ignáco Mendo, 1880. |
Chegamos, enfim,
apeamo-nos à porta de uma pobre cabana, em cujo alpendre devíamos pernoitar. O
guia, morador deste lugar, havia partido horas antes, e só pela noite estaria
de volta a seu posto. Resolvemos, pois, examinar os sítios com os nossos
próprios recursos, aproveitando o resto da tarde.
As cachoeiras, que são
muitas, traíam-se apenas por um rumor surdo. Marchamos contra este ruído, que
nos parecia longínquo, paramos para ver o bronze comemorativo da viagem do
Imperador, e seguimos além por entre pedras enegrecidas, blocos graníticos
arredondados, polidos, reluzentes, ora pretos em seco; mas depois assoberbados
pelas águas impetuosas do inverno.
Meia hora depois chegamos
ao alto de uma penedia, verticalmente talhada, quase ao nível do tabuleiro.
Dir-se-ia que a terra em suas primeiras épocas se retraiu convulsionada,
deixando um sulco profundo e estreitíssimo, para onde se despenham as águas do
rio.
Do alto desta medonha
penedia, 500 metros adiante de nós, precipitava-se no abismo uma bela e
volumosa coluna d’água, obliquamente iluminada pelos últimos raios de sol do
ocaso.
Apesar das belezas do
sítio, senti, entretanto, que se me arrefecia o entusiasmo. A cachoeira que eu
havia imaginado, o meu ideal de Paulo Afonso estava muito além do que eu
acabava de ver. Para meu consolo, porém, fui logo informado que a queda d’água
que acabávamos de visitar era uma das menores, e das menos importantes. A
maior, vê-la-íamos amanhã.
Cachoeira de Paulo Afonso_foto Ignácio Mendo, 1880. |
Caia a noite quando
voltamos à cabana. No dia seguinte, pela manhã, o guia rompia a marcha por
entre as pedras e os precipícios do leito posto em seco. Uma hora depois
galgávamos um rochedo, de cujo ápice se desfrutava toda a grande cachoeira. Vimos
então, numa profunda depressão do granito, rolarem as águas em borbotões de
espuma alvíssima, em esplêndido contraste com as lajes negras do fundo. Vimos
desde o alto da penedia, onde o rio começa a despenhar-se, até a bacia interior
onde refervem as águas em turbilhão, por toda a encosta, por todas as
anfractuosidades do rochedo, de 250 palmos de alto, despenharem-se os novelos
de espuma, quebrarem-se de encontro às portas de pedra, espadanarem pelas
encostas e, rugindo, abismarem-se em vórtice imenso. Por sobre as fauces do
abismo, o Ires desdobrava então o seu diadema múltiplo de cores cambiantes.
Quedamos silenciosos
diante de tanta majestade! O guia, porém, ergueu a voz, e do peito largo saiu
uma dessas interjeições prolongadas, sonoras, misto de admiração, de espanto e
de alegria; mas que o bramir das águas sufocou em meio, tornando-a apenas
perceptível.
Alguns dos nossos companheiros eram
norte-americanos; outros já haviam visitado a célebre cascata do Niágara, e
concordaram todos que a Paulo Afonso, conquanto de tipo inteiramente diverso, é,
entretanto, mais volumosa, mais cheia de variedades.
O capitão Burton[v] chama-a “O rei dos
Rápidos” (the king of Rapids), apelidando a do Niágara “a rainha das cascatas”
(the King of the Falls).
Cachoeira de Paulo Afonso. Foto Marc Ferrez, 1875. |
Com efeito, lá, no
Niágara, as águas se despenham verticalmente em imenso lençol; aqui, em Paulo
Afonso, temos um plano fortemente inclinado por onde se precipitam as águas em
gigantesco rápido. Lá, é mais alta a queda, mais pronunciada, mais elegante;
aqui, já mais volume d’água, há mais asperezas, mais majestade, mais variedade
de sítios.
Tirei o lápis, o meu
álbum, companheiro inseparável de viagem, e fazia a largos traços um esboço
desse esplêndido conjunto de águas e de penedias, quando senti que já havia
ficado só naquele labirinto de pedras. Olhei em torno de mim, não vi viva alma;
meus companheiros haviam descido o despenhadeiro, ganhavam a caverna numa das
extremidades da cachoeira, percorriam-na em grande parte, e voltarem por sobre
precipícios, ora faltando-lhe o equilíbrio, ora margeando nas pontas ásperas do
rochedo, feridos os joelhos, o facto rodo e as mãos calejadas.
Voltei, pois, aos meus
esboços, concluídos que foram, segui a esmo através daquelas asperezas, e fui
deparar com o caminho do dia anterior, quando já assustado me considerava
perdido.
Inundado de suor,
sequioso porque inacessível era a água do rio nesses sítios, deixei-me cair
fatigado sob a copa frondosa do angico, cuja sombra amiga contrastava imenso
com a ardência do sol já em seu Zenith.
Duas horas depois
prosseguimos em nossa jornada, levando a alma satisfeita e a memória
enriquecida de um dos passos mais interessantes da nossa vida. Partimos para
Jatobá, onde deviam começar os trabalhos do governo.
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Adaptado do livro Terra do
Sol Espelho da Lua, AMORIM, Etevaldo Alves. Ecos Gráfica e Editora – Maceió –
2004.
A CACHOEIRA DE PAULO AFONSO – IMPRESSÕES DE VIAGEM,
transcrito do
ILUSTRAÇÃO DO BRASIL –
Ano II – Nº 14 – 1880. Disponível na Hemeroteca Digital Brasileira: http://memoria.bn.br/DocReader/758124/819
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Caro leitor,
Este Blog, que tem como
tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com informações históricas
resultantes de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da
competente referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso
algumas delas seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que
faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário
registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo.
[i]
Comissão Hidráulica. Composta pelos engenheiros William Milnor Roberts, Antônio
Plácido Peixoto do Amarante, Rodolf Wieser, Domingos Sérgio de Sabóia e Silva,
Alfredo Lisboa, Miguel Antônio Lopes Pecegueiro, Tomás de Aquino e Castro,
Orville Adelbert Derby e Theodoro Fernandes Sampaio.
[ii]
João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu (1810-1906). Foi o 22º Presidente da
Bahia, de agosto de 1856 a maio de 1858. Foi Senador por Alagoas.
[iii]
Theodoro Fernandes Sampaio nasceu no dia 7 de janeiro de 1855, na sacristia da
capela do Engenho Canabrava, em Bom Jardim, município de Santo Amaro, Estado da
Bahia. Sua mãe era Domingas da Paixão do Carmo, escrava do Visconde de Aramaré.
Suspeita-se que seu pai seria o sacerdote da igrejinha da Casa Grande do
Engenho. No seu registro de óbito consta como pai: Joaquim Fernandes Sampaio. Entretanto,
na sua biografia no CPDOC/FGV, consta que é filho, não reconhecido, de
Francisco Antônio da Costa Pinto.
Foi casado com Capitulina
Maia Fernandes, com quem teve o filho Carlos Theodoro Sampaio e, em segundas
núpcias, a 14 de agosto de 1935, com Amália Augusta Barreto, filha do Coronel
João José Barreto e Adelaide Augusta Barreto. Participou ativamente do
movimento abolicionista, tendo sido sócio-fundador da Sociedade Brasileira
contra a Escravidão, entidade fundada por Joaquim Nabuco, em parceria com José
do Patrocínio e André Rebouças. Foi Deputado Federal pela Bahia, tendo tomado
posse em 02/05/1927. Faleceu no Rio de Janeiro em 15 de outubro de 1937, aos 82
anos de idade. Dá nome a dois municípios brasileiros: um no Estado da Bahia e outro no Estado de São Paulo.
[iv][iv]
Reynaldo von Kruger. Engenheiro em Chefe da construção da Estrada de Ferro
Paulo Afonso, designado em 1878. Faleceu em Uberaba-MG, aos 84 anos, no dia 25
de julho de 1919. Alemão naturalizado brasileiro, posto que aqui permaneceu por
mais de 50 anos de sua vida. Casado com Maria Alves Montes, com quem teve cinco
filhos, entre eles Fernando von Kruger.
[v]
Richard Francis Burton KCMG FRGS (Torquay, 19 de março de 1821 — Trieste, 20 de
outubro de 1890) foi um escritor, tradutor, linguista, geógrafo, poeta,
antropólogo, orientalista, erudito, espadachim, explorador, agente secreto e
diplomata britânico.
Reinaldo von Krüger foi indicado pelo seu amigo, o engenheiro João Ernesto Viriato de Medeiros, para chefiar a construção da Estrada de ferro de Paulo Affonso em 1878. O mesmo Viriato de Medeiros indicaria mais tarde o engenheiro Theodoro Sampaio para fazer parte da Comissão Hidráulica do Império no ano de 1879
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