Por
Antônio Osmar Gomes[i]
Presépio. |
Nos começos deste século, época da qual dou pessoal testemunho, apenas entrava o mês de dezembro, e já a velha cidade do Penedo, à margem esquerda do Rio São Francisco nas Alagoas, se aprestava, toda alvoroçada, para as festas caracteristicamente tradicionais do ciclo do Natal.
A praça
escolhida para os preparativos e respectivos festejos era a primitivamente
chamada de São Gonçalo Garcia, por ali se ostentar o secular templo sob a invocação
desse Santo da Igreja, e que hoje se chama de Floriano Peixoto, o Marechal de
Ferro, caboclo alagoano, canonizado pela República, que ele, com pulso forte,
consolidou.
Aos
meus olhos deslumbrados de menino de então, não afeitos ainda à contemplação de
logradouros públicos mais amplos nem mais vistosos, essa praça se afigurava
bela, muito bela e a maior do mundo. Era que nela cabia., mais ou menos
folgadamente, um sem número de barracas de todos os tamanhos, feitios e cores; bazares
e quiosques policromos e lantejoulados, um e às vezes até dois cavalinhos.
Certa
feita, apareceu ali, como novidade espantosa, um carrossel, todo fechado numa
empanada de lona branca, em forma de circo. Estava montado num tablado sobre o
qual corriam, em circunferência, por cima de trilhos de ferro, as rodas em que
se assentavam as bases dos soberbos cavalos de madeira e ferro, com arreios,
crinas e cauda de cabelo mesmo, e as cômodas poltronas, com balança deleitável,
próprias para quatro pessoas, de duas em duas, vis-à-vis. E tudo isso rodava,
por determinado tempo, a tostão por cabeça, e ao som de maviosos trechos
musicais de um realejo ou caixa de música, acionado pelo próprio movimento da
engrenagem geral, e junto dele espevitado negro de molas, risonho, mostrando os
dentes muito alvos, virando a cara ora para um ora para outro lado, trajando
calças brancas e jaleco vermelho, e segurando numa das mãos a manivela do instrumento,
como se fora ele quem o estivesse acionando.
Havia,
mais, em uma das extremidades da praça, quase sempre em frente à igreja, o
palanque enfeitado de guirlandas de papel de várias cores e reservado para as
representações dos autos populares dos reisados, chegança, bailes pastoris,
marujadas e maracatus. O resto eram mesinhas e bancas para os jogos.
Nos
bazares e quiosques, onde se agrupavam as famílias e as pessoas de qualidade,
arrumavam-se, da melhor forma possível, segundo o gosto ou, senso artístico de
seus donos, objetos mimosos e variados, dos quais se faziam sorteio, mediante a
venda das séries de bilhetinhos numerados, correspondendo a cada um dos artigos
expostos, que iam desde o frasco de perfume da moda até o apetitoso queijo do
reino.
Não
havia ainda por lá o progresso da luz elétrica. Os que dispunham de mais
recursos financeiros iluminavam os seus estabelecimentos com uns complicados
aparelhos de acetileno – luz suave e pálida, saindo rasgada impetuosamente, de
bicos forquilhados, , e protegidas por
cúpulas de vidro branco, marchetados de flores em relevo.
As
mesinhas de jogo, ou de comidas e bebidas, mais pobres, onde se encostava a
gente do povo, tinham apenas um alcoviteiro de querosene, com um pavio
desprendendo luz fumegante e cheiro pouco agradável, mas que, nem por isso,
deixava de atrair clientela bastante numerosa e alegre.
Outras
um pouco melhores do que estas últimas, ostentavam a placa de gás, muito usual,
então, nas casas de família, com o seu tubo de vidro, chamado comumente de
“manga do candieiro”, que servia de proteção da chama contra o vento, e com o
seu refletor de metal polido, dando maior intensidade à luz. Afina, fiam-se
também toscos aparelhos de carbureto chiando e vacilantes, produzindo gases de
cheiro característico.
Os
jogos ali praticados eram de azar. Faziam-se paradas de vintém e até de tostão,
sobre um pano encerado, no qual se achavam pintados seis, doze ou dezoito
números, tantos fossem os dados utilizados. Continham, outros, os vinte e cinco
números do jogo do bicho, cada qual num quadrado, com os seus animais titulares
desenhados a capricho. A sorte corria por meio de uma roda dentada, com os
números correspondentes. Quando posta em movimento essa roda, por ela passava,
trepidante, uma palheta de tartaruga, várias vezes, até que, diminuindo o
impulso rotativo, parava, cabendo o prêmio aos que acertassem o número
indicado, assim, pela palheta.
Como
disse acima, as paradas eram, na maior parte, de vintém. Um vintém acertando
dava de ganho mais quatro, isto é, completava-se um tostão, variando, todavia,
os planos e as vantagens, conforme o grau de confiança do público e de acordo
com as práxis mesmas desse ou daquele jogo. Lembro-me de um deles que tinha o
curioso nome de barrufo. Alguns, utilizando-se de dados, rifavam utensílios de
uso doméstico, tais como: xícaras, pratos, talheres, panelas, copos, bacias,
etc. De uma dessas rifas, me recordo que era, em altas vozes, apregoada pelo
seu explorador, como sendo:
“A
rifa da donzela,
com
um vitém
se
tira uma tigela...”
As
comidas consistiam de jacarezadas, cozidos, peixadas, sarapatel, feijoadas,
frigideiras de camarão do rio, tudo regado a vinho de caju, gengibre e outras
zurrapas, e precedido, infalivelmente, pelo gabado aperitivo de aguardente, com
várias misturas de folhas e frutos, cada qual com o seu nome identificador:
rabo de galo, cachimbo, cambuí, laranjinha, etc.
Isso
tudo se fazia em louvor do nascimento de Jesus, justificando-se as efusões de
alegria coletiva com a espera da Missa do Galo.
De
fato, entre meia-noite e uma hora, o povo acorria ao toque dos sinos, e se
comprimia todo no pátio da igreja matriz, onde a missa se celebrava e que era,
quase sempre, campal. Então, na praça de São Gonçalo Garcia ficavam os que, por
isso ou por aquilo, não estavam se preocupando com essa ritual solenidade do
catolicismo.
Terminada
a Missa, a maior parte das famílias se retirava para as suas casas. No entanto,
os jogos continuavam a funcionar, e os cavalinhos rodando sempre, até quase ao
amanhecer, quando, ali mesmo, nas barracas e em baixo das mesas, dormiam, a
sono solto, donos e fregueses, apostadores e banqueiros, todos vencidos pela
fadiga ou pelos excessos dos prazeres do álcool.
E
os festejos se prolongavam, assim, pelas noites seguintes, é verdade que menos
frequentados, porém com animação bastante para se manterem até altas horas,
embora não tendo mais, como pretexto, a Missa-do-Galo, mas sim os grupos que
vinham dançar no palanque, em frente à igreja, para louvar o Natal do Deus
Menino.
Uma
noite era a “Charanga”, com sua guarnição garbosa e bem compenetrada de seu
papel, composta de “Almirantes”, “Capitães-de-Mar-e-Guerra”, “Guardas-marinha”,
“Comandantes”, “Padre Capelão”, “Doutor”, “Reis Mouros, etc. etc.., que enchia
todo o palanque com a encenação dos seus episódios de viagens e de lutas no
mar. Antes, organizavam uma passeata pelas ruas principais da cidade, tocando
pandeiros, em marcha batida, e cantando a ária principal do folguedo:
“Alerta,
alerta, que dorme! (bis)
venham
moças à janela,
venham
ver a nau tirana (bis)
como
vai correndo à vela.”
Outra
noite, tinha-se o “Reisado”, de que o povo gostava tanto, atraído pelas graças,
nem sempre engraçadas, do “Mateu”, que era o condutor do boi, lhe chorava a
morte e lhe dividia os restos mortais com as pessoas presentes, por entre a
gargalhada franca do povaréu feliz. Parece-me estar a ouvir o tradicional canto
do “Reisado”, tirado pelo “Mateu” e que as figuras repetiam em coro:
“Ó
yôyô, ó yiá-yá,
olhe
o boi que te dá...
entra
prá dentro
meu
boi malambá.”
Muito
africanizado, pois que era todo composto de negros, o “Maracatu” se apresentava
mais bárbaro, não tendo a suavidade nem a melodia dos cantos da “Chegança” e do
“Reisado”. Numa toada quase agressiva, cantavam eles que:
“A
limpeza do Brasil
É
o passo de urubu...
Bravú”
Bravú!
Bravo
do Maracatu”
Mimosos,
no entanto, eram os “Bailes Pastoris”. Não se organizava um só, nem dois, nem
três. Eram muitos. Vinham de todas aquelas redondezas, cada qual porfiando em
se apresentar no palanque de Penedo, com maiores atrações, tanto de figurantes
como de cantos e orquestração. Traziam flautas, violões, rebecas, cavaquinhos,
clarinetas, e vozes escolhidas de mocinhas, na flor da idade, viçosas e
bonitas.
Os
mais afamados “Bailes” eram os que vinham do Cedro[ii],
localidade de Sergipe, perto de Propriá, pois não havia, segundo voz geral, por
todas aquelas margens do São Francisco, terra de meninas mais formosas e mais
alegres. “Bailes” que vinham do Cedro atraíam, desde logo, as atenções gerais,
sobretudo do rapazio, que se dividia em partidos, dividindo as preferências por
duas ou três figuras, uma como representando o “cordão da rosa”, outra “do
cravo”, ou uma a “fita azul”, outra “a encarnada”, e, assim, se digladiavam em
torneios de aplausos e de gastos de dinheiro, para a vitória da “fita” ou do
“cordão” predileto. E as meninas, ufanas do seu sucesso, enquanto que o matuto
empresário da “função” se sentia mais ufano de seus resultados práticos,
cantavam no palanque da praça de São Gonçalo com toda garridice e encanto que
lhes eram próprios, as comunicativas e lindas cantigas de “Bailes”, as
principais revezando-se nas cenas para entoar a “parte” que lhes cabia, a cada
um, de per si. Lembro-me bem da “parte” da “Arauna”, tão simples quão maviosa e
expressiva:
“Chô,
chô, chô, chô...
Araúna”
Não
deixe ninguém te pegar,
Araúna!
Tenho
dinheiro de prata,
Arauna!
Para
gastar com as mulatas,
Arauna”
Assim
era que, na primeira metade deste século, de que dou testemunho pessoal, nesta
evocação, que a minha grande saudade, comovida, desperta em íntimas expansões,
assim era que em Penedo se faziam as festas tradicionais do Ciclo do Natal,
partindo do dia 24 de dezembro e encerrando-se depois de Reis.
Não
direi que as de hoje sejam melhores nem piores.
A
mim, porém, as recordações singelas das festas de ontem, me falam mais
intensamente ao coração, o que é justo, pois as vivi com a idade e os alvoroços
com que não é dado viver e vibrar agora na contemplação das festas tão
diferentes de hoje e que, amanhã, decerto, ainda mais diferentes serão...
E
não é nisso, afinal de contas, que está toda a poesia da vida?! ...
Bahia,
dezembro de 1941.
Transcrito
da revista Excelsior, 15 de dezembro de 1942.
Caro
leitor,
Este
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, contém postagens com
informações históricas resultantes de pesquisas, em geral com farta
documentação e dotadas da competente referência bibliográfica. Por esta razão,
solicitamos que, caso algumas delas seja do seu interesse para utilização em
qualquer trabalho, que faça uso tirando o maior proveito possível, mas fazendo
também o necessário registro de autoria e a citação das referências. Isso é correto
e justo.
Antônio Osmar. O Cruzeiro, 23/09/1967. |
ANTÔNIO OSMAR GOMES. Economista, industrial. Nasceu em Penedo-AL no dia 14 de outubro de 1896 e faleceu em Petrópolis-RJ no dia 29 de março de 1979. Filho de Antônio Gomes de Sousa e Ester M. Gomes. Casado com Maria Esther Gomes, com quem teve o filho Osmar Gomes. Fez os seus primeiros estudos na cidade natal, de onde se transferiu, em 1913, para a capital da Bahia, onde cursou a Escola Comercial, hoje Faculdade de Ciências Econômicas, e recebeu o diploma de "graduado em Comércio e Fazenda". Foi secretário da Associação Comercial e da Federação do Comércio da Bahia de 1944 a 1948. Membro do Conselho de Fazenda da Bahia em 1947 e Presidente da Bolsa de Mercadorias (1948). Delegado da Bahia à Conferência das Classes Produtoras na cidade de Teresópolis (1945) e Araxá (1949). Delegado do mesmo Estado na Conferência Internacional de Comércio e Produção, em Chicago (1948); em Santos SP (1950); em Santiago do Chile e em Houston (EUA) e no Peru (1952). Delegado Brasileiro à 5ª reunião do Acordo Geral de Tarifas e Comércio realizada na Inglaterra, de outubro de 1950 a abril de 1951. Presidente do Conselho Superior de Tarifa, 1949-50. Transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1949, exerceu as funções de Presidente do 2o Conselho de Contribuintes, no Ministério da Fazenda e da Câmara de Comércio Teuto-Brasileira no Rio de Janeiro desde 1950, havendo desempenhado outras comissões de estudos econômicos no Itamarati e no Instituto de Resseguros do Brasil. Membro do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, bem como do de Alagoas. Pseudônimo: Paulo de Damasco. Obras: Notas de uma Excursão, 1928; Ressurreição, 1932/1935 (versos); O Soneto Inacabado, Petrópolis: Vozes, 1934/36, (crônicas); Conflitos e Posições do Espírito Moderno, Rio de Janeiro: José Olympio Ed. 1938 (ensaios); A Chegança, Contribuição Folclórica do Baixo São Francisco, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1941 (folclore); Compreensão de Humanismo, Zélio Valverde, Rio de Janeiro, 1942 (ensaio); Uma Frase Singular (esboço biográfico), Bahia, 1943; A Greve, capa de Santa Rosa, Zélio Valverde, Rio de Janeiro, 1945, (romance); O Bispo-Missionário, (biografia) Bahia, 1947; Tradições Populares do Baixo S. Francisco (folclore), Anais do 1º Congresso Brasileiro de Folclore, Rio, 1951. Colaborações: O Diário, Belo Horizonte, MG; O Imparcial, A Tarde, da Bahia; Jornal do Comércio, Dom Casmurro, e O Jornal, do Rio, e sobre assuntos econômicos na Revista Bancária Brasileira e Observador Econômico e Financeiro. Fonte: ABC DAS ALAGOAS.
[ii]
Cedro, Estado de Sergipe. A Lei nº 1.015 de 4 de outubro de 1928, sancionada
pelo Governador Manoel Dantas, elevou Cedro à Categoria de Vila e Sede do
Município, desmembrado de Propriá, sendo instalada a Vila a 1 de Janeiro de
1929. O decreto nº 69 de 26 de março de 1938, anexou o termo à Comarca de
Propriá. Pelo Decreto-Lei nº 533, de 7 de dezembro de 1944, o Município passa a
ter o nome de "Darcilena", porque o prefeito Miguel Seixas queria
homenagear a mulher de Getúlio Vargas, Darcy, e a mulher de Augusto Maynard,
Helena. Mudando para Cedro de São João em 6 de Fevereiro de 1954, pela Lei
Estadual nº 554, passando a contar com mais um Distrito de Paz, o de São
Francisco. Depois, o Distrito de São Francisco foi desmembrado, tornando-se
Município. Fonte: Wikipedia.
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