Monteiro Lobato[i]
Em Alagoas. A catorze
quilômetros de Maceió a estrada real em certo ponto margeia-se duns casebres
humílimos - o bairro do Riacho Doce. A capela, uma ou duas vendas onde pouco há
de vender, a agenciazinha do correio onde a chegada duma carta constitui acontecimento.
Moram ali pescadores e gente que lida com cocos. Peixes do mar e frutos do
coqueiro – a vida do Riacho Doce se condiciona a isso.
Há beleza natural. Lindo,
o oceano, dividido em três faixas; primeiro, uma de pálido verde veronês;
depois, uma de translúcido verde vivo das ondas da Copacabana; por último, a
faixa azul que se limita com a linha do horizonte. Beirando o mar de três
cores, a praia branca, que vira coqueiral a partir do ponto máximo alcançado
pelas marés.
Coqueiros e mais
coqueiros. Só coqueiros, nessa praia do riozinho já de nome internacional,
citado nas revistas de petróleo e em tratados. Um riacho de águas mansas, pouco
profundas, claras, que os pescadores e banhistas atravessam, no ponto em que a
água lhes suba acima dos tornozelos.
Banhistas, sim. Riacho
Doce é também praia de banhos. Na estação própria, algumas famílias vêm de
Maceió passar ali uma semana ou duas.
A estrada real corre
areienta por entre os coqueiros, acompanhando a praia. Por ela transitam
criaturas a cavalo. Não usam selas. Montam em pelo, na anca, para maior
comodidade, apesar do grotesco que é. Gente paupérrima, com todos os vincos
dessa terrível “miséria brasileira”, só comparável à miséria chinesa. Os
cavalos são cavalicoques, tão degenerados do normal sadio como as criaturas
humanas. A subalimentação mostra seus estragos em todos os viventes porque o
rendimento do solo é magérrimo. Mas ressurgirão esplêndidos no dia em que o subsolo
for mobilizado.
Dois “palácios” se
destacam, um contíguo ao outro, entre as choupanas do Riacho Doce. São duas
vivendas de campo que já tiveram seu tempo. A primeira constituiu o “palácio de
verão” do governador Fernandes Lima, que para lá refugia aos calores da
capital. Essas estações governamentais em Riacho Doce quebravam o marasmo do
lugarejo com a nota festiva das reuniões políticas, dos bailes, das retretas
pela banda de Maceió, num coreto de que só existem hoje os alicerces de
cimento. O “palácio” pertence agora à Cia. Petróleo Nacional, que o adquiriu,
com um grande terreno anexo, por 25 contos. Nele estão hospedados os
engenheiros geofísicos da Elbof.
Na vivenda seguinte mora
Edson de Carvalho[ii],
o rijo pioneiro do petróleo nordestino. Varanda ladrilhada de tijolo comum, com
cadeiras de balanço e uma rede. No quintal, mangueiras e cajueiros velhíssimos.
Que cajus dão aquelas árvores! Uma cerca de paus a pique separa o quintal da
estrada. A um canto da cerca, um pé de embauva[iii]. Debaixo dele, um túmulo
em miniatura, sempre com flores em cima. É onde dorme a Marquesinha do Riacho
Doce.
Quem foi essa criatura à
qual, positivamente, o Brasil deve uma grande coisa?
Uma preguicinha criada
por Edson de Carvalho, falecida antes de completar um ano de idade. Recebeu-a
de presente, filhotinha ainda e transformou-a em “pet”. Nas casas sem crianças
há sempre um animal, cão ou gato, que se beneficia dos carinhos maternais e
paternais privados do alvo normal dos filhos. Na vivenda de Edson não havia cão
nem gato. A preguicinha tornou-se o “pet” querido.
A embauva do quintal
fornecia-lhe os brotos com que se alimentava. Preguiça não vivem sem embauva
perto. Foi logo elevada ao marquesado. Virou a Marquesinha do Riacho Doce – e
mereceu-o pela sua inteligência, sua dignidade, seus olhos ultra-negros,
profundos de expressão. Integrou-se na família. Entendia tudo. Acompanhava o
evolver do sonho de Edson. Sempre no colo de um ou de outro, pagava os mimos
com abraços e olhares. Há infinitos de mistério no olhar duma preguicinha.
A luta de Edson e seus
companheiros no Sul ia tremenda. Estavam exaustos e no fim. Sentiam-se
completamente vencidos e, no íntimo, até se envergonhavam de ainda persistirem
quixotescamente na liça, fingindo uma convicção de vitória que era pura
mentira. As deserções e traições dos companheiros; o silêncio e a má vontade
dos jornais; a indiferença do público já degenerada em hostilidade cruel; cada
subscritor a suspirar o suspiro das vítimas: “Fui na onda, meu caro; caí na
asneira de comprar tantas ações” – e a resposta inevitável do “esperto”: “Ah,
eu sabia disso. Petróleo? Não há petróleo no Brasil – e essas tais companhias o
que merecem é cadeia, nada mais”.
O Departamento Mineral
nadava num mar de delícias. Conseguira matar uma por uma todas as iniciativas,
como quem mata piolhos – estalando-as entre as unhas. As companhias de São
Paulo já estavam por terra. O perigoso poço do Araquá tivera a audácia de
chegar a 1.076 metros, mas aos golpes do Departamento já lá estava, felizmente,
detido no seu avanço – e com o audacioso sujeitinho que o levara até essa
profundidade posto fora da companhia. No Riacho Doce as manobras secretas
tinham conseguido inutilizar os três poços tentados por Edson. O sabotador do
último deles foi recebido no Rio entre palmas – e colocado como chefe supremo
do petróleo oficial, no famigerado Departamento. Merecia aquela recompensa quem
tão maquiavelicamente soubera agir contra a teimosa empresa alagoana. Pode ele,
então, partejar a célebre monografia sobre as rochas gond-wanicas, onde
provava, por a mais b, que não havia petróleo em todo hemisfério meridional, e,
portanto, também não havia no Sul do Brasil – trabalho que mereceu do ministro
da Agricultura palmas especiais, tornando-se a bíblia daquela gente.
A guerra contra a
companhia do Edson foi de uma ferocidade inaudita. Momento houve em que
empregaram a força. Um interventor[iv] de Alagoas, por sugestões
do Departamento Mineral, mandou ocupar militarmente a sonda, expulsando de lá o
pessoal da companhia. Edson, o incorporador, o responsável por tudo perante
milhares de acionistas, viu-se durante catorze meses impedido de penetrar nas
propriedades da empresa. Teve de fugir para o Rio, onde pacientemente ficou à
espera de que o interventor caísse...
Um dia o interventor caiu
e Edson pode voltar para sua casinha do Riacho Doce. Mas em que situação
econômica, santo Deus! Em que situação moral! Dinheiro já não havia nenhum.
Dias houve de faltar cinco mil réis para a comida – mas a sua convicção quanto
à existência de petróleo no Riacho Doce era tamanha que nada lhe quebrava o
ardor. Não tinha dinheiro? Muito bem. Trabalharia sem dinheiro.
Loucura pura! Perfurar
sem dinheiro! Realizar esse trabalho dispendiosíssimo, que é uma perfuração,
sem dinheiro! Já era o delírio do homem tomado de ideia fixa. Já era transtorno
mental. Ninguém se apiedou dele, ninguém se riu, como no palácio do duque todos
riam do cavaleiro de la Mancha, porque, abandonado de todos, ninguém mais
acompanhava a ação de Edson.
O pioneiro louro despiu o
paletó e, impossibilitado de contratar um sondador, fez-se ele mesmo o sondador
na Nacional. Auxiliado por dois homens dali, ex-pescadores, que não precisavam
de dinheiro para viver, pois tinham o mar e os cocos, meteu mãos ao trabalho.
Um grande sonho o
animava. Edson sabia, tinha provas de que o último poço lá aberto pelo antigo
Serviço Geológico, em 1922, tocara em petróleo livre aos 300 metros. Ora, se
ele conseguisse chegar a essa profundidade, fatalmente também tocaria em
petróleo – e tudo estaria salvo. O segredo da sua resistência verdadeiramente
absurda deve ter sido esse. Deliberou, jurou consigo levar o poço São João até
os 300 metros. Se nada encontrasse, então sim – abandonaria tudo, confessando a
derrota.
Mas não se perfura sem
dinheiro. Há sempre necessidade de algum para a compra deste ou daquele
material na cidade – e a cidade não vende fiado aos loucos.
Problema insolúvel. Onde
levantar dinheiro? Em Maceió, impossível. Nem a chegar até lá o pioneiro se
atrevia. Oito meses passou sem pôr o pé em Maceió. Os numerosos pequenos
acionistas por ele “logrados” eram capazes de linchá-lo, se o vissem na rua. A
campanha de difamação promovida pelo oficialismo a serviço dos “trusts” fora
perfeita.
Último recurso: o sertão.
Talvez no sertão, por aquelas bibocas não chegam jornais e nenhum eco do que se
passa na parte “civilizada” do Brasil, pudesse levantar algum dinheirinho.
Ideia de louco – mas que é um pioneiro do petróleo no Brasil senão um louco
varrido?
Edson despediu-se da
esposa, afagou a Marquesinha e, montado numa perfeita réplica de Rocinante, lá
partiu. Ia fazer essa loucura quixotesca de penetrar no sertão em busca do que
menos há lá: dinheiro.
Foi o pondo máximo da sua
carreira. O delírio do heroísmo. Léguas e léguas, dias e dias, semanas e
semanas sob aquela soalheira criminosa do sertão, com paradas aqui e ali para
catequizar este ou aquele matuto, ensinar-lhe o que era petróleo e, ao cabo
duma luta tremenda, vender-lhe uma ação. Cada ação vendida era um milagre. No primeiro mês desse martírio
conseguiu vender cinco. Quinhentos mil réis! Uma fortuna – e Edson, com as
esperanças renascidas, voltou radiante para casa, para a sonda, para o serviço.
E pode perfurar mais uns
metros.
Mas o dinheiro acabou.
Nova entrada pelos sertões. Nova catequese. Novas semanas de soalheira
terrível. Novo dinheirinho em notas ressecas, de tanto tempo guardadas no lenço
vermelho, lá no fundo das arcas. E Edson voltou e m ais uma vez retomou o
serviço, perfurando mais uns metros.
Terceira entrada no
sertão, dessa vez lá pelas zonas onde corria o bando sinistro de Virgulino.
Chegou a cruzar-se com a gente de Lampião. E o penoso da catequese?
Sua garganta secava de
tanto falar, de tanto explicar o grande negócio que seria para o matuto
adquirir uma ação de petróleo. “Mas que história de petróleo é essa?” “Petróleo
é querosene”, tinha Edson de ensinar. O matuto sabe o que é querosene, pois o
compra na venda para a sua lamparina, e acha caro. Admitia, portanto, que se
aquele moço tirasse querosene de dentro da terra seria u m bom negócio –
poderia fornecer querosene para todas as lamparinas do sertão – e largava as
sebentas notas do lenço vermelho.
Mas tudo cansa. Um dia
Edson fraqueou. Um acidente qualquer na sondagem o fez despertar de tudo. “É
loucura insistir”, pensou consigo. “Chega. Já lutei demais. Estou no fim”. Deu
ordem para suspender-se o serviço. “Vocês tratem da vida”, disse aos dois
auxiliares. Vou parar com isto. Não aguento mais”. Os dois auxiliares nada
responderam. Ficaram com os olhos no moço vencido que, a passos lentos e cabeça
baixa, seguia de rumo à sua casa, a trezentos metros dali.
Era o fim da campanha do
petróleo no Brasil. Tudo falhara em São Paulo e tudo ia falhar no Norte. Edson,
o último combatente, depois de queimados os últimos cartuchos, tomara resolução
de largar o poço e sumir. Era engenheiro. Em qualquer parte, bem longe de
Alagoas, ocultar-se-ia no anonimato dum trabalho qualquer. O petróleo do Riacho
Doce estava definitivamente derrotado. José Bach, Pinto Martins, ele...
Quando pisou na varanda
da sua modesta vivenda, o plano da nova vida já estava definitivamente assente
em sua cabeça: fugir para o Sul no dia seguinte. Chamou a esposa para
comunicar-lhe a resolução. Dona Elisa não estava. Só estava em casa a Marquesinha,
que, ao vê-lo, lhe abriu os braços. Edson tomou-a e sentou-se na rede, a olhar
para aqueles olhos negríssimos. Notou que no abraço da preguicinha havia
qualquer coisa de novo, de mais forte, de mais significativo. Também notou que
seu olhar era de censura e queixa. Aquilo o impressionou. Edson enterneceu-se.
Sim. Como abandonar a Marquesinha?
Levá-la para o Sul, impossível. Teria também de levar o pé de embauva. Deixá-la
com aqueles pescadores equivalia a condená-la à morte. Quem, naquela rudeza,
teria coração bastante para compreender e amar a Marquesinha?
E Edson, o homem forte,
vacilou. “Ela não quer que eu vá. Quem sabe se não é o destino que a faz
abraçar-me assim?” Olhou-a bem fundo nos olhos negríssimos. Aqueles olhos
ultra-humanos falavam, imploravam que não fosse – que a não abandonasse entre
estranhos desalmados. E Edson, invadido de subitânea ternura, mudou de ideia.
Deliberou ficar. E ficou.
No dia seguinte pela
manhã torna ao serviço. Os dois auxiliares sorriram.
- “Continua, então,
patrão”?
- Que remédio?! A Marquesinha
não quer...”
Metem mãos à obra. Vão
emendando uma haste na outra e descendo a coroa rotativa. O ferro alcança o
fundo do poço, então na cota dos 250 metros. A máquina é posta em movimento. O
sistema começa a regirar. Lá no seio da terra a broca vai progredindo com a sua
lentidão desesperadora. Súbito, a água da boca do poço referve em borbulhas.
- “Será gás?” murmura o
pioneiro, com o coração aos pinotes.
Chega um fósforo. Sim!
Gás inflamável – gás de petróleo, o sinaleiro, o anunciador da grande coisa
procurada” ...
Tomado de profunda
emoção, Edson corre ao paletó pendurado dum cajueiro e manda um bilhetinho
histórico a dona Elisa, em inglês: (Sua esposa é americana).
“Wify: it looks we are
getting there – the well is boiling – just come over – say nothing. Hubby.
(Wify: parece que vencemos – o poço está a ferver – venha já – não fale nada.
Hubby).
Mais uns metros
perfurados nos dias que se seguiram e o gás irrompe tremendo. A folhinha
marcava o mês de junho de 1935.
... ...
...
Era a vitória do Brasil
contra a força tremenda do oficialismo a serviço das forças externas
escravizadoras. Era o triunfo da Nacional, de Edson, dos seus companheiros do
Sul. Era o começo do Brasil de amanhã. Era o bruxulear do Quarto Poder Mundial
do Petróleo. E se essa coisa tremenda veio, foi apenas porque o abraço da Marquesinha
do Riacho Doce impediu em certo momento que o último soldado desertasse.
Logo depois a preguicinha
fechava os olhos para sempre, sem causa visível. Instrumento do destino que
foi, desapareceu logo que teve sua missão cumprida. Dela só resta hoje aquele
túmulo em miniatura embaixo da embauva. Nele há sempre uma flor do dia. Como há
uma lágrima de infinita ternura nos olhos de Edson sempre que conta do abraço e
do olhar de censura com que, impedindo-lhe a fuga, a Marquesinha salvou a
campanha do petróleo no Brasil.
O Engenheiro Edson de Carvalho |
Desembocadura do Riacho Doce |
*** ***
Transcrito do jornal
Correio Paulistano, São Paulo, 24 de setembro de 1936.
Para saber mais acesse https://www.historiadealagoas.com.br/a-saga-do-petroleo-alagoano-iii-edson-de-carvalho.html
[i] José
Bento Renato Monteiro Lobato (Taubaté, 18 de abril de 1882 – São Paulo, 4 de
julho de 1948).
[ii]
Edson Feitosa de Carvalho nasceu em Vitória, atual Quebrangulo, no dia 23 de
julho de 1897. Era filho de João Honório de Carvalho e Carolina Feitosa. No dia
29 de setembro de 1917, em Bronx, New York, casou-se com Liesel Ott, uma alemã
criada nos Estados Unidos. Quando se naturalizou brasileira passou a se chamar
Elise. Em segundas núpcias, casou-se com Vicentina Soares de Oliveira.
[iii]
O mesmo que Imbaúba. Designação comum, extensiva às árvores do gênero Cecropia,
nativas das regiões tropicais americanas, de folhas grandes, flores em espiga e
pequenos frutos nuciformes, também conhecidas por árvore-da-preguiça, imbaíba,
umbaúba, etc.
[iv]
Afonso de Carvalho – Interventor Federal de 10 de janeiro de 1933 a 2 de março
de 1934.
Que bela recordação da luta brasileira pela libertação econômica do ouro negro, ainda hoje requerida por nós! Afora a sutil e decisiva participação da preguicinha, destaca-se mais um alagoano nos anais de nossa história. Infelizmente, assim como os estrangeiros agem sobre nosso país, nossa região Nordeste ainda vem sofrendo para se libertar da imposição de região apenas consumista. Temos de tudo nestes rincões, além de estarmos mais perto das grandes e ricas regiões consumidoras: EIA e Europa. Nossa independência econômica deve mesmo assustar os sulistas...
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