Por
Etevaldo Amorim
O naturalista Avé-Lallemant. |
Em
geral partindo de Penedo, esses viajantes subiam o rio até alcançarem Pão de
Açúcar, ponto comum de pernoite para, depois, seguirem até Piranhas e, de lá,
prosseguirem para as cachoeiras.
Assim
se deu com o naturalista alemão Avé-Lallemant[i]
que, em 1859, pouco antes do Imperador Dom Pedro II, empreendeu viagem às
famosas corredeiras.
*** ***
O
Tenente-Coronel da Guarda Nacional em Pão de Açúcar, José Gonçalves de Andrade[ii],
tinha diante de si, naquele dia 30 de abril de 1859, um personagem diferente.
Recebia em sua casa o naturalista Avé-Lallemant. Homem de ciência, possuidor de
um temperamento forte e uma boa dose de pedantismo, teve de nós a pior das
impressões e ousou externa-la com uma franqueza e um realismo impressionantes,
a ponto de chocar a nossa sensibilidade.
Talvez
por esta razão, Aldemar de Mendonça, em seu “Pão de Açúcar – História e
Efemérides”, ao registrar a visita, tenha omitido esses comentários muito pouco
lisonjeiros.
Mesmo
sabendo que a nossa realidade de então não era das melhores, conforta-nos o
comentário constante da “Nota do Revisor”, da edição de “Viagem pelo Norte do
Brasil”, do Instituto Nacional do Livro, acerca do seu temperamento:
“Mas, quando não o transvia a paixão,
Avé-Lallemant é um observador atendo e inteligente, cujas viagens no Brasil são
dignas de leitura, mesmo quando narra fatos que, embora verdadeiros, melindram
o nosso patriotismo, muito sensível a censuras feitas por estrangeiros.”
Avisados
e prevenidos, relembremos a viagem do naturalista alemão pelo rio São
Francisco, desde Penedo, aonde chegou a cavalo, vindo de Maceió.
Tangida
por forte tempestade, que iniciara nas imediações da Jacobina, a canoa em que
Lallemant viajava chegou à Ilha dos Prazeres, mesmo com os dois panos fechados,
tal era a força do vento.
Canoa de tolda rústica no porto da Barra do Ipanema, vendo-se ao fundo a Ilha de N. S. dos Prazeres encimada pela igreja de mesmo nome. Foto: Abílio Coutinho, 1869. |
E
ele relata deslumbrado:
“Erguia-se aí no meio do rio uma grande penha
arredondada, no cimo da qual construíram uma bonita capelinha, sob a invocação
de Nossa Senhora dos Prazeres. Enquanto bramia a tempestade, subi até lá e
apreciei maravilhoso panorama, de todos os lados sobre a caudalosa torrente.
Vista sobretudo bela do lado do Norte. Aí deságua um afluente do rio São
Francisco, o rio Panema, através de estreita garganta rochosa, e serpeia na
margem plana, onde se vê pequena povoação[iii],
de aparência agradável, que dá a impressão de alguma atividade comercial. Muito
perto, uma pequena lagoa, que se comunica com o São Francisco. Esse certamente
o trecho mais bonito do rio.”
Passada
a tormenta, prosseguiram a viagem rio acima, agora com vento regular, a ponto
de permitir aos canoeiros abrir o “pano-de-asa” e zingrar as águas turvas do
rio cheio.
“Passamos ligeiros pelas pequenas povoações
de Lagoa Funda, i, Limoeiro e logo deixamos para trás São Pedro, situado sobre
uma ilha rasa, como Espinhos, que lhe fica diagonalmente fronteiro. Vimos então
surgir do rio, à distância duma boa milha, um penhasco redondo, indicativo da
Vila de Pão de Açúcar. Não tardou muito, distinguimos também a vila. A noite,
porém, caiu logo. Amainou o vento, de maneira que alcançamos já tarde o término
de nossa jornada fluvial.”
Naquela
mesma noite, Lallemant recebeu a visita de muitas pessoas notáveis, para as
quais trazia algumas cartas de apresentação. No dia seguinte, depois de iniciar
os preparativos para a viagem a Paulo Afonso, e tendo conseguido a companhia do
Capitão Manoel Joaquim, aproveitou o domingo para ver o lugar. Com o azedume
que o caracterizava, principiava sua tempestade de críticas, em muitos aspectos
bastante arrazoadas, mas impiedosamente mordaz:
“Um lugar como esse contava apenas de 2.000 a
3.000 habitantes, e como viviam! Moram como porcos, como porcos vivem e são
indolentes como porcos. E essa preguiça faz-se tanto mais sentir por negar-hes
a natureza tudo o que é preciso para o conforto da vida. Alhures, a necessidade
torna o homem inventivo; no São Francisco, faz o povo preguiçoso, estúpido e
sóbrio até a fome. Preferem morrer na necessidade e sob vexatória carência a
suportar a terrível e vergonhosa catástrofe: o trabalho.”
E
prossegue:
“Por isso, a maioria dessa gente pode
dizer-se realmente de mendigos e pouco resistentes, dada a falta de boa
alimentação e outras condições necessárias à vida. Por ocasião de doenças,
sucumbem muito facilmente; contaram-me que, por ocasião da cólera,
enterraram-se lá 471 cadáveres.”
“Graças a essa horrível fraqueza e indolência
do povo, não se vê nos arredores de Pão de Açúcar o mais leve indício de
lavoura. O deserto começa exatamente onde a cidade acaba, um terreno arenoso,
árido, por trás da cidade, encimado por um montão de blocos de granito, pouso
predileto de urubus, de onde espreitam, esfomeados, a presa lá em baixo. Onde quer
que se vá, onde quer que se fique, por toda parte o mesmo quadro sombrio de
desolação; por toda parte firma-se a convicção de que ali terra e povo nunca
serão nada.”
O outeiro encimado por um montão de blocos de granito citado por Lallemant. Foto: Edgard de Cerqueira Falcão, 1939. |
Lallemant
partiu na segunda-feira à tarde, acompanhado do Capitão Manoel Joaquim, que já
fizera a viagem outras vezes, e de um negro que conduzia uma mula carregada de
provisões. Dizia fazê-lo com “verdadeiro
prazer”, enquanto deixava para trás “o
triste Pão de Açúcar, e com ele a lembrança, embora muito fraca, de sua
civilização.”
Passados
alguns dias, estava ele de volta. O desconforto da cansativa viagem, porém,
parece ter contribuído para uma boa reflexão. Tendo que dormir no meio do mato,
muitas vezes com as roupas molhadas e sofrendo toda sorte de privações,
Lallemant confessava-se satisfeito por se ver de novo”entre gente”. Tendo chegado
já de noite à casa do Tenente-Coronel José Gonçalves de Andrade, pode desfrutar
de uma noite reparadora.
Na
manhã do dia seguinte, às nove horas, embarcava numa canoa de regresso a
Penedo. Deixava, porém, escapar uma palavra de afago:
“Despedi-me do bom povo de Pão de Açúcar
sinceramente agradecido. Sem o grande sacrifício do Sr. Gonçalves e do Cap.
Manoel Joaquim, não me teria sido absolutamente possível a viagem à Cachoeira
de Paulo Afonso naquela estação do ano, através do sertão.”
*** ***
Avé-Lallemant
nasceu em 25 de julho de 1812, em Lübeck, na Alemanha. Filho dos professores de
música Jacob Heinrich Avé-Lallemant e de Friederike Marie Canier. Irmão do
criminalista Friedrich Christian Avé-Lallemant e do crítico musical Theodor
Avé-Lallemant.
Iniciou
o curso de medicina em Berlim, mudando em seguida para Heidelberg. Após um
semestre de estudos em Paris, completou seus estudos e obteve o doutoramento em
medicina na Universidade de Kiel, Alemanha, em 1837.
Em
Lübeck teve contato com Alexander von Humboldt, que o convidou para participar
da expedição Novara para o Brasil. Avé-Lallemant abandonou a expedição no Rio
de Janeiro, iniciando então a viajar sozinho pelo Brasil. Estas expedições
foram apoiadas pessoalmente por D. Pedro II.
Estabeleceu-se
no Brasil, como médico no Rio de Janeiro. Avé-Lallemant não foi conhecido
somente por suas viagens exploratórias pelo Brasil, mas também por ter
influenciado o sistema de saúde brasileiro.
Foi
eleito Membro Titular da Academia Nacional de Medicina em 1846 e foi membro
correspondente das Sociedades Médicas da Suécia, Prússia e Saxônia.
Tornou-se
médico da enfermaria dos estrangeiros da Santa Casa de Misericórdia. Durante a
epidemia de febre amarela, no verão de 1849-50, clinicou no lazareto da ilha de
Bom Jesus e no Nossa Senhora do Livramento. Foi então convocado para trabalhar
no Conselho de Saúde do Império e atendeu também no Hospício D. Pedro II.
Em
1858-1859 Avé-Lallemant retornou novamente para Lübeck, abrindo um consultório
em 1859. Em 1869 foi convidado, novamente sob incentivo de Humboldt, para a
cerimônia de inauguração do Canal de Suez.
Recebeu
os títulos de cavalheiro da Ordem Imperial de Cristo do Brasil e comendador da
Ordem Imperial de São Estanislau da Rússia.
Faleceu
em 10 de outubro de 1884 em Lübeck.
Fonte: Academia
Nacional de Medicina. Disponível em: < https://www.anm.org.br/robert-christian-barthold-ave-lallemant/>
Aceso em 6 de
abril de 2024.
*** ***
NOTA:
Caro
leitor,
Deste
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de
informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita
pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência
bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse
para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito
possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das
referências. Isso é correto e justo.
[i]
Robert Christian Bertold Avé-Lallemant. Etnógrafo, botânico, médico e geólogo
alemão, nasceu em Lubeck, em 1812 e lá faleceu em 1884. Estudou em Berlim, em
Paris e Kiel, onde se doutorou em 1837, partindo logo para o Brasil. Foi o iniciador
da medicina tropical e, no Rio de Janeiro, foi diretor do Hospital da Febre
Amarela e sócio da Junta Superior de Saúde, entre 1837 e 1854.
[ii]
Nasceu em 24 de novembro de 1820. Filho de Francisca Gonçalves de Andrade,
falecida em Água Branca no dia 19 de julho de 1879, aos cem anos, segundo
notícia do jornal Paulo Affonso, de 27 de julho de 1879.
De seu
primeiro casamento com Anna Maria do Sacramento, irmã do Dr. Miguel Alves
Feitosa, teve os filhos: Aprígio Gonçalves de Andrade, José Gonçalves de
Andrade Filho, Themístocles Gonçalves de Andrade – padre, Maria Alves do
Sacramento e Clara, que faleceu ainda pequena.
De seu
segundo casamento com Cândida Delfina do Coração de Jesus, teve os filhos: Luiz
Gonçalves de Andrade – padre, Leopoldo Gonçalves de Andrade- professor (pai de
seu Zequinha Andrade), Afonso Gonçalves de Andrade e Luiz Gonçalves de Andrade,
que morreu criança.
Faleceu
a 11 de dezembro de 1880. Foi sepultado na entrada da Igreja Matriz do Sagrado
Coração de Jesus. No seu túmulo, "a
inscrição é aberta em mármore de Itália e betumada de preto". (fonte:
Valle Cabral, de Villa Nova a Paulo Affonso, Gazeta de Notícias, RJ, 2 de
dezembro de 1888, p. 2.)
[iii]
Refere-se ao povoado Barra do Ipanema, pertencente ao município de Belo Monte.
Interessante como as águas do Velho Chico permitiram a passagem de importantes figuras históricas por nossa região. Muito interessante, e de valor especial, é termos um historiador do quilate de Etevaldo proporcionando às várias gerações o acesso a tão ricos detalhes sobre esses personagens e fatos.
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