Rubens Rodrigues dos
Santos[i]
Embarcamos, ao anoitecer, numa
canoa de tolda que se apresta a deixar Piranhas, rumo à cidadezinha de Pão de
Açúcar. Mal nos instalamos por cima de alguns sacos de algodão, começam os
preparativos da partida. Soltam-se as vergas, desfazem-se as cordas que prendem
os panos, içam-se os traquetes, recolhe-se a prancha e desatam-se as amarras. E
eis-nos em viagem, descendo outra vez o São Francisco.
A habilidade do mestre de bordo
assombra-nos. Navegamos no escuro, contra o vento, por sítios eivados de
obstáculos. Num frio golpe de espera, pedras enormes rasgam continuamente o
ventre deslizante do rio. Remoinhos e corredeiras levam no bojo a mentira e a
pressa das águas. Aqui e ali o canal se estreita, apertam-se por entre
barrancos escarpados, dobra-se, volteia morros, e novamente se enrosca,
indeciso, difícil. Mas, mesmo assim, o mestre prossegue sem dificuldades,
bordejando de um barranco a outro, decompondo com o ardil de suas manobras a
oposição constante da brisa.
Deitados de costas sobre a carga,
olhamos o espaço e sentimos a grandiosa quietude do que é eterno. O céu abre-se
para receber nossos devaneios e as estrelas transformam-se em sonhos de luz. Um
silêncio macio envolve-nos em fofos abafos de alcovas. Ouvimos somente o ranger
das vergas e o leva marulhar das águas cortadas pela proa. Embala-nos a doce
mudança de inclinação que acompanha a virada dos panos. As pálpebras pesam-nos.
Cerram-se os olhos para a noite profunda que lá no alto é continuamente
revolvida pelos mastros e pelas vergas.
Canoa Filha da Floresta, Piranhas, 1950. Acervo Marcos Mendonça |
*** *** ***
Estamos em Pão de Açúcar, aguardando uma oportunidade para prosseguir viagem rio abaixo. A lancha de carreira, que três vezes por semana desce até Penedo, partirá somente depois de algumas horas, o que nos deixa tempo de sobra para visitar alguns carpinas fabricantes de canoas e com eles aprender a terminologia descritiva das embarcações utilizadas em todo o Vale do São Francisco.
Seguimos pela praia, e aqui e ali
vamos encontrando, na parte mais alta do barranco, os sítios onde se constroem canoas de tolda, chatas e taparicas.
Não há propriamente um estaleiro: as peças são trabalhadas sobre a areia e
depois armadas ao ar livre, sem proteção alguma.
Porto de Pão de Açúcar, 1948. Foto J. Lisboa |
A menor embarcação encontrada no baixo S. Francisco é a canoa de um pau só, ou taparica, que eles constroem escavando e arredondando um tronco de madeira de lei: Arapiraca, amarelo e baraúna. A proa e popa são afiladas a capricho, de maneira a se obter uma quilha cortante, que avance com facilidade sobre a água. Tem de vinte a trinta palmos de comprimento e é impulsionada tanto à custa de remo ou de varejão, como também da loló, um pano rústico, de formato quadrangular, que permanece esticado graças ao mastro vertical e à verga, assentada obliquamente.
Essas embarcações recebem ainda
os nomes de charita e de canoa de pescador, principalmente
quando o seu tamanho chega a aos quarenta ou cinquenta palmos, ou então quando
elas sofrem algumas alterações destinadas a aumentar-lhes a largura. Está neste
caso a prática comum de abrir de ponta a ponta uma taparica e assentar-lhe entra as metades uma tábua. Fixa com
cavername de raiz de baraúna, de
maneira a duplicar-lhe a capacidade de transporte.
Uma charita transpondo o Morro do Morim, Limoeiro. |
No baixo São Francisco encontram-se também embarcações de tamanho médio, denominadas chatas, com um comprimento que varia a setenta palmos. Têm fundo pouco abaulado e são construídas à custa de cavername de madeira rija e de uma rombeação de tábuas de cedro. Sua capacidade é apreciável, sendo utilizadas comercialmente no transporte de cereais, açúcar, algodão e farinha. Impulsiona-as o vento soprando em dois grandes panos triangulares, um aberto no mastro de vante e outro no mastro de ré, um estirado para bombordo e outro para boreste, ao longo de vergas que se projetam por sobre a água.
Uma chata rio acima. Foto: CPDOC/FGV |
A maior embarcação a vela encontrada no baixo São Francisco é a canoa de tolda, com oitenta, noventa e até cem palmos de comprimento. Sua capacidade de transporte é superior à da chata; e ela é utilizada, como esta, na condução de gêneros alimentícios, matérias-primas e utensílios diversos.
É construída com cavername e
rombeação de madeiras de lei. Sua proa, afilada, é coberta por uma armação
arqueada de tábuas ou de palha, que se estreita, acompanhando o estreitamento
do costado. Sob esta tolda, de dois
metros de largura por uns quatro de comprimento, abrigam-se mercadorias
perecíveis, tripulantes e eventuais passageiros, que se amontoam num abafamento
e num mau cheiro peculiares aos porões de navios. Este tipo de embarcação
também é impulsionado pelo vento sobre dois grandes panos de formato trapezoidal, os traquetes, um estendido no mastro e nas vergas de proa, outro
desfraldado à ré.
Além dessas embarcações à vela,
no trecho de rio que vai de Piranhas à foz, trafegam lanchas de motor “diesel”
para passageiros e cargas[ii].
São de propriedade particular, vindo daí, certamente, a regularidade e os bons
serviços que prestam às populações do baixo São Francisco.
A Icaruana em Penedo. Foto: Pierre Verger |
A Comissão do Vale, em dezembro de 1958, encampou os bens da empresa possuidora dos dois maiores barcos em tráfego na região: vapores movidos por hélice, casco de chapa, mas obsoletos e completamente estragados. Um deles, o Penedinho, foi encostado como irrecuperável; o Comendador Peixoto[iii] permanece imobilizado em reparos que se eternizam. Isso significa que a CVSF nada faz em benefício do transporte de passageiros e cargas neste trecho do rio, a não ser remunerar – com um total de 65.000 cruzeiros mensais – os 19 funcionários inativos da organização que encampou.
Cabem aqui algumas indagações:
não sabia a Comissão do Vale do São Francisco que esses dois barcos eram velhos
demais e irrecuperáveis? Se sabia, por que encampou a empresa? Por que não
constituiu uma nova companhia de transportes, bem aparelhada, possuidora de
lanchas modernas, adquiridas com o dinheiro disponível para compra desses dois
autênticos ferros-velhos?
E preciso que se apurem quais as
verdadeiras razões e quais os responsáveis por essa negociata lesiva aos
interesses da região e do país.
...
Partimos de Pão de Açúcar rumo às
cidades de Propriá e Penedo, grandes centros produtores de arroz do Baixo São
Francisco. A nossa lancha é veloz e avança com a força de uma cunha que se
cravasse continuamente na distância. O rio atira-se, livre agora dos
obstáculos. De um lado e de outro, altos barrancos de relva elevam-se a prumo e
logo se arredondam em colinas revestidas
de vegetação abundante. O verde domina a paisagem. Um verde lustroso, nédio,
contínuo, espalhado a perder de vista. Um verde nascido de terra forte, de
terra criadeira, de terra dignificada de húmus.
Ficou para trás a palidez da e do agreste
e agora as cores brotam vivas na face robusta da zona da mata.
Traipu, AL. Foto CPDOC/FGV. |
Traipu surge à nossa frente, encarapitada no alto de um promontório audacioso. Aproxima-se, amplia-se, revela-se por inteiro, passa lentamente ao nosso lado, e logo desaparece lá para trás.
As águas continuam lisas,
convidativas ao corte da quilha, e a brisa chega tão mansa quanto um toque de
plumas. Mastros e velas de embarcações que vão e vêm definem a geometria do
rio: velas quadradas, triangulares, trapezoidais; mastros perpendiculares e
mastros oblíquos.
Propriá e Penedo são as duas
irmãs venturosas da foz. Cidades prósperas, têm sua economia estabilizada
graças à cultura de cereais, principalmente de arroz, cujo plantio é feito nas
ilhas e nas margens inundadas periodicamente, ou então nas lagoas formadas na
época das enchentes. À medida que as aguas recuam, as mudas vão sendo espetadas
na terra coberta ainda por um palmo d’água.
Cultivo do arroz: arranque do canteiro para plantio em local definitivo. |
Esse trabalho de transplante do arroz é feito por sua maior parte por mulheres e crianças, que recebem o vil pagamento de vinte ou trinta cruzeiros por dia de trabalho. Maltrapilhas, sujas, passam horas e mais horas na umidade da lama, vestes encharcadas, mãos e pés engelhados e endurecidos. Frequentemente, buscam no álcool a energia e o conforto reclamados pelo seu organismo depauperado. E assistimos, então, a cenas constrangedoras: mães e filhas compartilhando na mesma garrafa de aguardente! Crianças de dez, doze, quinze anos, magras, esfarrapadas, sujas, trabalhando bêbadas nos arrozais de Propriá.
Canos de diversos tipos no porto de Propriá-SE. |
Penedo. À esquerda, o Comendador Peixoto. À direita, o "Penedinho" |
Chegamos, finalmente, à foz do São Francisco. E assim terminamos a nossa jornada.
Durante esses dois meses de
viagem, experimentamos as mais variadas emoções: enlevo diante das paisagens
deslumbrantes, comoção diante de cenas tristes, esperança diante de algumas
promessas, revolta diante da incúria dos homens.
Sentimos tudo isso. Mas que dizer
agora, neste final, como fecho de uma narrativa assim tão variada? Discorreremos
sobre o estado deplorável de um vapor? Narraremos a desdita de um barqueiro?
Falaremos do abandono das terras ribeirinhas? Não!! Não, porque isso está
condicionado à atuação dos homens. Nosso comentário final deve referir-se,
portanto, aos administradores e políticos que têm em mãos os meios para agir na
área que acabamos de percorrer.
A lancha Tupan no porto de Propriá-SE |
....
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NOTA:
Caro leitor,
Sob o tema “HISTÓRIA E
LITERATURA”, este Blog exibe postagens com informações históricas resultantes
de pesquisas, em geral com farta documentação e dotadas da competente
referência bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso algumas delas
seja do seu interesse para utilização em qualquer trabalho, que faça uso
tirando o maior proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de
autoria e a citação das referências. Isso é correto e justo. Segue abaixo, como
exemplo, a forma correta de referência:
Sugestão de registro de
referência:
SANTOS, RUBENS RODRIGUES DOS. SÃO
FRANCISCO, RIO MISSIONÁRIO. Rio de Janeiro, outubro de 1959. Disponível em:
http://blogdoetevaldo.blogspot.com/2020/09/sao-francisco-rio-missionario.html. Acesso
em: dia, mês e ano.
RUBENS RODRIGUES DOS SANTOS. Engenheiro, jornalista, cineasta. Faleceu em São Paulo, a 27 de agosto de 2000, aos 75 anos, quando trabalhava do jornal O Estado de São Paulo. Em 1959, conquistou o Prêmio Esso de Jornalismo com a reportagem Diário de um flagelado das secas.
http://memoria.bn.br/DocReader/364568_19/9932
[iii]
O Comendador Peixoto ainda navegou até meados da década de 1960.
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