sexta-feira, 30 de setembro de 2022

TRAÇOS A ESMO (A MULHER QUE PEDE ESMOLAS PARA SANTOS)

 

J. Calisto[i]

 

Tiradores de esmolas p/Festa do Divino.
Foto: Luiz Bartolomeu Calcagno.

A mulher que pede esmolas para santos é, ordinariamente, velha. Roupas fartas, humor atrabiliário, uma expressão de dignidade imensa, não raro um molho de cabelos e uma verruga na venta.

Anda pelas ruas, pelas feiras e pelas estradas, penetra familiarmente no interior das casas, conhece remédios que, com a ajuda de Deus, não têm rival em substância, sabe histórias, casos para contar a propósito de tudo, cura de quebranto, dor de cadeiras, espinhela caída, com benzeduras e rezas. Tem orações para todas as moléstias.

Arroga-se uma grande importância, emprestada pelas figuras de barro, de madeira, de gesso, de papel, que lhe povoam o oratório pequeno, pintado de amarelo, com duas sentinelas de cera à porta, espetadas com gargalos de garrafas.

Por aqui, por ali, anda às pressas, a explorar a superstição alheia, agarrada a uma caixa de pau ou de folha, que tem ao fundo uma estatueta grosseira ou uma litografia desbotada, entre flores de papel e de lata, sujas, poeirentas, torcidas, requeimadas ao sol.

É de ver a atitude impagável com que apresenta aquilo aos fiéis que a rodeiam. Respeitosos, de chapéu na mão, estes se chegam com gestos gravicômicos, chuchurreiam um beijo aos pés da imagem que ali está e, curvados, piedosos, depositam um níquel na sacola que se escancara a um lado.

É uma profissão rendosa.

Entre os múltiplos retratos de personagens celestes que lhe enchem o altar, a mulher que pede esmolas possui sempre um santo de resistência, espécie de oráculo da vizinhança, hábil e conhecido fazedor de milagres, com uma grande autoridade que lhe dá a velhice.

Muitas vezes vem de outras gerações, pertencem a uma avó ou bisavó da proprietária atual, que também explorava a indústria santeira, com algum êxito; e já naqueles tempos remotos se revelava um razoável milagreiro. Com os anos, naturalmente, cresce a virtude. Contam-se fatos a respeito dele, citam-se exemplos, que são espelhos, dizem. É aquele que, naquelas redondezas, se recorre em caso de necessidade. Fazem-lhe oferendas, compram-se os seus favores com laços de fita, toalhas bordadas, velas de sebo, dinheiro. As promessas cumprem-se, que ele quase nunca deixa de tomar em consideração a súplica dos crentes. Dor de dentes, engasgos, reumatismo, abcessos, feridas, torcicolos, mal de empalamados, doenças de olhos, dentições complicadas, tudo é motivo para importunações ao orago e consequente paga à criatura que dele vive.

O santo recebe ex-votos dos fiéis curados – muletas abandonadas, cabeças de barro, pernas, braços, seios, outros órgãos. Isto, porém, oferece-se de preferência, por não ter valor nenhum, à Santa Cruz de beira de estrada, também milagrenta, sempre enfeitada de ramos e de flores, erguida num chão muito limpo, varrido a vassourinha.

A mulher que pede esmolas faz festas com uma parte do dinheiro arrecadado. São novenas em que se cantam coisas terríveis, numa língua atrapalhada e esquisita, benditos medonhos. No terreiro da casa, botequins de folhagem, onde se vendem doces e cachaça. A zabumba a atroar, acompanhando a irritante música dos pífaros. O foguetório estalando no ar. E o povaréu agrupado em torno da mesa do leilão, onde se erguem montanhas de frutos, pencas de ovo pintados, bolos, guloseimas, trabalho de paciência, como a clássica e ingênua caixinha de segredo, enfeitada de papel de cor, e cheia de castanhas assadas. Em baixo, o guinchar de bacorinhos amarrados, de mistura com galinhas, patos e outros bichos.

É ali que a mulher que pede esmolas para santos encontra uma de suas principais fontes de receita. Aquilo deixa muito. Ora, se deixa! E reproduz-se com frequência porque, além dos trabalhos do mês mariano, que rendem bastante, ela festeja o São Sebastiao em janeiro, São José, em março; o Divino Espírito Santo em maio; Santo Antônio, São Pedro e São João em junho; São Francisco em outubro; Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia em dezembro, além de outros menores.

É uma profissão recomendável, nestes tempos de crise, quando tudo está em apuros, o comércio meio escangalhado, a lavoura quase morta.

Muito rendoso meio de vida.

É só arranjar uma caixa, um oratório, meia dúzia de estampas e uma verruga no nariz, coisa que dá certo respeito e importância a uma pessoa que deseje dedicar-se à prática da exploração do carolismo.

 

 

 

Transcrito do jornal O ÍNDIO, Palmeira dos Índios, 13 de março de 1921, coluna TRAÇOS A ESMO. Disponível em : http://memoria.bn.br/DocReader/720925/18

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Caro leitor,

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[i] J. Calisto, pseudônimo de Graciliano Ramos. Nasceu a 27 de outubro de 1892 em Quebrangulo, Alagoas. Faleceu no Rio de Janeiro a 20 de março de 1953. Filho de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro Barros Ramos.

Um comentário:

A POESIA DE PÃO DE AÇÚCAR



PÃO DE AÇÚCAR


Marcus Vinícius*


Meu mundo bom

De mandacarus

E Xique-xiques;

Minha distante carícia

Onde o São Francisco

Provoca sempre

Uma mensagem de saudade.


Jaciobá,

De Manoel Rego, a exponência;

De Bráulio Cavalcante, o mártir;

De Nezinho (o Cego), a música.


Jaciobá,

Da poesia romântica

De Vinícius Ligianus;

Da parnasiana de Bem Gum.


Jaciobá,

Das regências dos maestros

Abílio e Nozinho.


Pão de Açúcar,

Vejo o exagero do violão

De Adail Simas;

Vejo acordes tão belos

De Paulo Alves e Zequinha.

O cavaquinho harmonioso

De João de Santa,

Que beleza!

O pandeiro inquieto

De Zé Negão

Naquele rítmo de extasiar;

Saudade infinita

De Agobar Feitosa

(não é bom lembrar...)


Pão de Açúcar

Dos emigrantes

Roberto Alvim,

Eraldo Lacet,

Zé Amaral...

Verdadeiros jaciobenses.

E mais:

As peixadas de Evenus Luz,

Aquele que tem a “estrela”

Sem conhecê-la.


Pão de Açúcar

Dos que saíram:

Zaluar Santana,

Américo Castro,

Darras Nóia,

Manoel Passinha.


Pão de Açúcar

Dos que ficaram:

Luizinho Machado

(a educação personificada)

E João Lisboa

(do Cristo Redentor)

A grandiosa jóia.


Pão de Açúcar,

Meu mundo distante

De Cáctus

E águas santas.

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Marcus Vinícius Maciel Mendonça(Ícaro)

(*) Pão de Açúcar(AL), 14.02.1937

(+) Maceió (AL), 07.05.1976

Publicado no livro: Pão de Açúcar, cem anos de poesia.


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PÃO DE AÇÚCAR


Dorme, cidade branca, silenciosa e triste.

Dum balcão de janela eu velo o seu dormir.

Nas tuas ermas ruas somente o pó existe,

O pó que o vendaval deixou no chão cair.


Dorme, cidade branca, do céu a lua assiste

O teu profundo sono num divino sorrir.

Só de silêncio e sonhos o teu viver consiste,

Sob um manto de estrelas trêmulas a luzir.


Assim, amortecida, tú guardas teus mistérios.

Teus jardins se parecem com vastos cemitérios

Por onde as brisas passam em brando sussurrar.


Aqui e ali tu tens um alto campanário,

Que dá maior relevo ao pálido cenário

Do teu calmo dormir em noite de luar.

____

Ben Gum, pseudônimo de José Mendes

Guimarães - Zequinha Guimarães.






PUBLICAÇÕES

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Pão de Açúcar, Cem Anos de Poesia