Por Francisco
Henrique Moreno Brandão[i]
Moreno Brandão. Foto: acervo Aldemar de Mendonça
A noite, muito negra e muito fria, veio de inverno. Por isso, no samba animado que havia em casa de Aninha Peixe, não se dava um intervalo entre uma dança e outra sem que a comparência, de parte as distinções de sexo ou de idade, não fosse ingerindo goles sucessivos de camboim, deliciosa bebida fabricada nos engenhos de Brejo Grande e Piaçabuçu e trazida para ali na sua canoa, alcunhada de “Flor da Bocarra”, pelo Manoel de Serva.
Depois as “cirandas” e
outras espécies coreográficas do populário brasileiro continuavam, dando ensejo
a que aqueles próximos descendentes dos urumarys, em meneios pecaminosos, em
cortejos lúbricos a que nenhuma dama se furtava, revelassem a força
incontestável de um atavismo sempre em vésperas de repontar estuoso.
A sala tibiamente alumiada por um “alcoviteiro” era um apartamento sórdido, sem reboco, nem ladrilho. A poeira que os pés dos dançarinos levantavam se juntava à fumaça dos cigarros amarelos ordinários e ao cheiro acre dos corpos suarentos. Tudo isto tornava a atmosfera irrespirável e parecia aumentar a excitação nervosa dos dançadores.
Lá na cozinha, duas
velhas memoravam as virtudes do fundador daquela aldeia, Frei Dorotheu, um
verdadeiro taumaturgo, que ali se entregara a uma catequese, cujos frutos
estavam agora bem visíveis no mais repugnante dos contrastes.
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Frei Dorotheo de Loreto. Foto: Pietro Vitorino Regni. |
De casario alinhado e
relativamente confortável, erguido no tempo do frade franciscano, subsistia
apenas uma ruinaria extensa, bem diversa do que era visto nas eras de esplendor
da Ilha de São Pedro.
O convento de taipa
fora também se desmoronando aos poucos. Ora uma goteira renitente vinha
apodrecer uma tábua do soalho, ora uma rajada frenética do vento sueste,
atingindo violentamente uma janela, a quebrava. Mais tarde caia um trecho do
frontispício e a brecha que ficava, ia-se alargando desmesuradamente.
Mão fatídica parecia ir
derrubando as telhas da cobertura, hoje uma, amanhã outra, mais tarde outra,
sucessivamente outras e outras, e assim por diante.
O estrago se consumiu tão celeremente, que o
andar térreo do convento se tornou uma pocilga de bácoros e no compartimento
superior, nas celas despovoadas de frades, fizeram repugnantes morcegos o seu
poso habitual e querido.
Não era menor a deterioração da igreja, cuja fachada um raio rachara de meio a meio. Das imagens que ali houvera poucas restavam, pois quase todas foram surrupiadas, não faltando um novo Judas que vendesse outra vez o desdenhado Cristo. As que ficavam nos seus nichos tinha o aspecto grotesco de bonzos e se mostravam de uma amarelidão ictérica, pois as frequentes intempéries as haviam cruelmente descolorido. O próprio ladrilho do templo fora torpemente roubado e andava servindo de múltiplos misteres nas casas que, na Ilha de São Pedro, não estavam ainda desertas.
Morto o pastor zeloso,
esborcinadas as construções que ele fizera, pedindo esmolas em uma e outra
margem do São Francisco, também os sampedrenses, esquecendo exemplos e
conselhos, se desmandaram. Apareceu logo um mandão feroz, que passou a viver de
rapinas, impondo terror a todo mundo, tomando criações aos donos, comprando
fiado e pagando com desaforos e ameaças, raptando as mulheres e filhas alheias,
até que montou um serralho povoado por umas cinco ou seis pellioas[ii]
que os seus gostos mutáveis os forçavam a trocar por outras novas. O exemplo da
lasciva despeiada medrou de tal forma que ninguém em breve se arriscava a casar
com moça de São Pedro, receoso de um logro.
Por sua vez, as mulheres casadas não estavam longe de certas tendências pecaminosas e raríssimas eram aquelas que não se mostravam muito latitudinárias em matéria de concessões amatórias. Com isso começou também a predominar em longa escala a embriaguez, que empolgava desde a criança de 8 anos até o septuagenário de giba proeminente, encurvado para o chão, de olhos mortiços e passos trêmulos.
Como dois lances de
redes deitada ao São Francisco bastavam para garantir abundante colheita de
peixes, e dois mergulhos de covos davam, em camarões enormes, uma quantidade
miraculosa, quase não se trabalhava na antiga aldeia, e todos viviam mais ou
menos bem.
A serraria fechada,
onde ninguém mourejava mais, fora dilapidada no melhor do seu acervo de ferramentas,
e agora fazia prodígios de equilíbrio para não se nivelar com o solo, quando o
vento canalizado entre as alas da cordilheira marginal ao mediterrâneo brasileiro
rugia com ímpeto descomunal.
As roças eram meia
dúzia de metros plantados por um sampedrense mais laborioso e rapinadas pela
coletividade insulana em peso.
No quadro que outrora
formava a aldeia havia cinco ou seis tavernas e outras tantas casas de jogo. Em
umas e outras, as rixas eram frequentes, havendo facadas, tiros e punhaladas,
que ninguém punia.
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A igreja de São Pedro e as ruínas do Convento. Foto: Os Capuchinhos na Bahia, de Pietro Vitorino Regni. |
Mas, enquanto esses
lugares suspeitos andavam repletos de frequentadores, a olaria contava apenas
com a assiduidade de duas ou três velhas de face repulsiva, as quais ali
praticavam a mais rudimentar das indústrias.
Esse descalabro fez que
as afugentassem de São Pedro as massas numerosas que, no mês de janeiro, iam
ali assistir às festas proverbiais do Espírito Santo. Para ela convergia tudo
quanto havia de mais seleto na região oparina e a pobre ilha habitada por
caboclos semicivilizados, se transfigurava faustamente, dando a impressão de
uma metrópole regularmente povoada, tamanho era o movimento da rua. Agora nada
disso se via. Nem ao menos, cumprindo a última vontade de Frei Dorotheu, no dia
do celeste claviculário, havia ateada em frente a cada residência uma fogueira.
Como lhe esqueceram depressa as injunções, faziam justamente o que ele
expressamente proibia.
Viviam em contínuos
batuques de que um dos mais estridentes era aquele que estava sendo realizado
na noite do pescador apostolar.
É verdade que as almas
cândidas sempre lembradas do frade santo estavam a esperar a cada momento que o
poderio deste se mostrasse num castigo exemplar.
O castigo não veio, porém
veio uma advertência. Das bandas do nascente, miríades incontáveis de
pirilampos apareceram, cobrindo o comprimento do diâmetro da ilha circular.
Esses vagalumes, ora formavam um listrão enorme, ora davam a ideia perfeita de
um círculo ou de uma elipse, ora se dispunham triangularmente, mais tarde
surgiam em pelotões dispersos em falanges que acima da ilha procuravam direções
inteiramente díspares. Por fim, pousando, num átomo, sobre uma tamarineira
existente diante do convento, ali ficaram, dando a ideia de uma iluminação
fantástica.
A recomendação de Frei Dorotheu foi então
lembrada e os foliões ébrios que dançavam lubricamente na casa de Aninha Peixe
foram se dispersando, dispersando, medrosos e enfiados.
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Ilha de São Pedro. Foto: portodafolha.com |
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Transcrito do jornal A
ESQUERDA, Rio de Janeiro, 17 de julho de 1931. Disponível em: memoria.bn.br.
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NOTA:
Caro leitor,
Deste Blog, que tem
como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de informações
históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita pesquisa, em
geral com farta documentação e dotadas da competente referência bibliográfica.
Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse para utilização em
qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior proveito possível, mas
fazendo também o necessário registro de autoria e a citação das referências.
Isso é correto e justo.
Tratamento de imagem: Vívia Amorim.
[i]
Francisco Henrique Moreno Brandão. Filho do Dr. Félix Moreno Brandão e de Dona
Maria Aguiar Moreno Brandão. Tinha como avós paternos o Anacleto de Jesus Maria
Brandão e Maria Francisca da Conceição; e, maternos, Manoel Caetano de Aguiar
Brandão (seu irmão) e Carolina de Aguiar Brandão. Nasceu em Pão de Açúcar no dia
14 de setembro de 1875 e faleceu em Maceió em 17de agosto de 1938.
Este belo artigo descreve um pouco das consequências socioculturais provocadas pela miscigenação de culturas tão distintas em nosso País e, em particular, em nossa região ribeirinha. Muito interessante
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