Valdemar
de Souza Lima[i]
Há
uma criatura – luminar das letras provincianas, desaparecida prematuramente, e
que nunca deixou de ser uma das companheiras mudas das minhas horas de
meditação: é Bráulio Cavalcante.
E,
contudo, não conheci Bráulio pessoalmente, antes de mais por que ele não
pertenceu à minha geração catingueira mal amanhada.
Numa
tarde de verão de 1912, quando já ia longe o desmoronamento da oligarquia então
reinante em Alagoas, no pátio do engenho pacato e doce como o próprio açúcar
que ele produzia e onde por acaso me encontrava passando uma chuva, eis que um
sujeito se pôs a contar dos trepidantes sucessos de Maceió e do assassinato, frio
e covarde, do jovem e inditoso pensador conterrâneo.
O
fato gravou-se fundamente na minha na minha sensibilidade e creio que dai
brotaram as ligações espirituais que ainda me estreitam à memória do moço
sertanejo, tão cedo desaparecido. Eu era menino, analfabeto e tímido como
ninguém, mas essa circunstância só fez contribuir para que o impacto que deu
causa à tragédia que o levou me marcasse mais firmemente ainda.
Anos
depois, ouvi de outro indivíduo o relato do enterro de Bráulio Cavalcante.
Disse-me essa testemunha ocular do lutuoso episódio que nunca experimentara
comoção igual.
O
féretro partira da Igreja do Livramento e toda a população da capital, num
impressionante movimento de protesto e solidariedade humana, se mobilizara para
conduzir ao Campo Santo aquela grande esperança da terra, ceifada quando mal
despontava para a vida. Era difícil surpreender olhos enxutos. Mesmo as pessoas
mais sisudas não podiam se conter.
Agora,
alinhavando daqui esta crônica, vêm-me à mente, por uma natural associação de
ideias, outra versão relacionada à morte do grande pão-de-açucarense e que já
se acha de muito incorporada ao folclore sertanejo.
Na
casa dos Cavalcante, na cidadezinha são-franciscana, pouco depois de ter sido
ele cruelmente imolado no fatídico comício da Praça dos Martírios, em Maceió, a
família se reunira em torno à mesa para a refeição da noite.
Ana —
a “mãe-preta” de Bráulio, e que o adorava, saia nesse instante da cozinha, conduzindo
um prato de arroz quando, ao cruzar o corredor que ligava os duas peças, súbito
soltou um grito de pavor e caiu desmaiada.
Atraída
pela inesperada ocorrência, a família precipitou-se em seu socorro. Que teria
acontecido? Lançou-se mão, com a presteza que o caso exigia, do tradicional
dente de alho para enchumaçar as narinas da mulher e vigorosas fricções foram
aplicadas aos seus pulsos flácidos.
Quando,
afinal, recuperou os sentidos, Ana partiu em pranto convulso, exclamando em
altos brados:
—
Mataram “meu filho”! Mataram “meu filho”!
Os circunstantes
fixaram-na atônitos, ao passo que a negra entrava em explicação:
— Vi
“meu filho” quando se dirigia para a cozinha, ao meu encontro; tinha os cabelos
em desalinho e trazia uma enorme mancha de sangue em cima do peito. Ana! Eu já morri,
disse-me tristemente. Eu já “morri”!
Ainda
não se tinha de todo dissipado a atmosfera de mal-estar motivada pela lúgubre
visão da “mãe-preta”, quando o estafeta do Correio local bateu na porta,
emocionado, trazendo preso entre os dedos trêmulos o despacho fatídico e que
era, sem mais nem menos, a confirmação da tragédia momentos antes, a uma alma
simples, misteriosamente revelada.
Bráulio
Cavalcante, poeta e tribuno, mocidade vitoriosa e orgulho da sua gente, tinha
sido riscado do mundo dos vivos.
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Publicada
no Jornal de Alagoas, 14 de novembro de 1954. Agradecimentos ao pesquisador
Davi Roberto Bandeira da Silva pela cessão do texto original.
Bráulio Cavalcante em sua formatura na Faculdade de Direito do Recife em 1911.
Acerco de Homero Cavalcante, seu sobrinho-neto.
Funeral de Bráulio Cavalcante. Fonte: revista O Malho, 6 de abril de 1912.
Multidão acompanha o enterro de Bráulio Cavalcante.
[i]
Valdemar de Souza Lima, tabelião, funcionário público, jornalista, nasceu no pequeno povoado de Salomé (então pertencente ao município de Igreja Nova), hoje município de São Sebastião, cidade localizada na parte sul do Estado de Alagoas, no dia 20 de fevereiro de 1902, como filho de José Virgílio de Souza Lima, pequeno comerciante, agricultor e criador de semoventes, e de Josefa Leite de Souza Lima, professora pública estadual. Faleceu em Brasília 17 de julho de 1987, onde
passou a residir a partir de 1967. Colaborou em periódicos. Pertenceu. À Associação
Nacional de Escritores e é Patrono da Cadeira Nº 12 da Academia Palmeirense de
Letras, ciências e Artes. Bibl.: Graciliano Ramos em Palmeiras dos Índios, 1971; O cangaceiro Lampião e o IV mandamento, 1979. Faleceu em 12 de agosto de 1986.Fonte: ACADEMIA
PALMEIRENSE DE LETRAS, CIÊNCIAS E ARTES e ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS ESCRITORES.
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