Por Fernando Maciel
Mendonça
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Pão de Açúcar, 1946. Foto: João Lisboa. |
Este é o solar de minha
terra natal, aonde vim em gozo de licença com o duplo objetivo de cuidar da
saúde vacilante e matar saudades. Nestas notas procuro traduzir o que outros,
naturalmente, já contaram de modo diferente, segundo as perspectivas de cada
época, de onde transbordam os desencantos de impressões íntimas.
Aqui revivi na imaginação
os meus remotos dias de calças curtas, a perseguir borboletas no meio da rua
sob a irradiação de um sol tropical de esplendor vivo, no tempo em que os
meninos soletravam no caminho da escola, a cartinha do ABC, como Wilde recitava
pelas ruas de França os versos de Nerval. O passado estava sendo revivido e, em
dado momento, vi-me ridicularizado numa procissão, com sapatos de salto alto de
minha irmã, numa situação que bem merecia uma cena de Bocácio.
Despertaram-me, num ápice,
os acontecimentos da época há 26 anos adormecidos, num embevecimento de quem
revê velhas fotografias desbotadas, imagens inolvidáveis de manhãs longínquas.
E fiquei atônito com a transformação encontrada, como o menino que ao regressar
a casa, alguns meses depois, julgava encontrar ainda pintos as galinhas que
encontrara. Esta viagem pelos dias transcorridos despertaram-me ressonâncias de
vozes pretéritas nunca de todo esquecidas, quando o perfume das flores do lírio
emanava mais evocador que nunca. O passado!...
Depois voltou á realidade
das situações concretas, como um desfecho de peça teatral, quando se finda a
fantasia e não nos resta senão viver a vida total como é: o presente.
Agora ouço o vento gemer
vergando os galhos dos tamarineiros sobreviventes da rua onde moro, soprando lá
do leste e sacudindo a poeira repetente de todas as tardes que desgraçadamente
não desapareceu, como desgraçadamente desapareceram as coisas que encerraram a
estranha força duma sedutora vibração da alma, que o homem iconoclasta destruiu
ou o tempo impiedoso tangeu para sempre da vida de Pão de Açúcar de 1927.
Adiante está o morro do
Cavalete, em cujo topo as mãos do artista João Lisboa modelou com engenho e
arte, o Cristo Redentor e, a sua esquerda, o cemitério onde uma noite
pareceu-me ouvir o bando de Lampião em volta dele, cantar “Mulher Rendeira”,
acompanhado por uma sanfona reles. E continua perdido na caatinga rarefeita,
longe da cidade talvez medrosa das sombras dos nossos mortos irmanados, como o
cemitério de Rossignol[i]
na solidão duma floresta gaulesa, onde as cruzes das vítimas francesas da
primeira grande guerra se confundem com as árvores, testemunhas do fragor da
primeira batalha que tantas vidas ceifou. No pé desse morro, o São Francisco,
escrevendo-lhe a base granítica num trabalho milenar, tem hoje uma cor de barro
e carrega detritos adiante postos á margem.
E pensei comigo, a vida
também joga ao repouso das margens da existência, em meio das areias do
esquecimento, criaturas que não passam de detritos humanos. Ah! Velho São
Francisco. Não tens mais aquele vigor que tivestes em tempos recuados com tuas
periódicas enchentes, enchendo de poesia trágica as noites quentes de Pão de
Açúcar ao submergir os casebres da gente humilde do Xique-Xique pelos lados da
lagoa, onde o Parujé despeja miríades de seixos multiformes. As derrubadas
constantes das matas nos contrafortes da Canastra para o plantio do café e
formação de pastagens, por certo minguaram-te as fontes, minguando-te o
manancial da torrente impetuosa, reservando-te o destino que tiveram alguns
rios dos desertos da África e da Ásia, dos quais restam-lhes os leitos
fossilizados.
Do outro lado, em
território sergipano, vê-se o morro do Carrapicho, com aspecto semelhante ao da
Serra de São Tomé das Letras, nas proximidades de Três Corações do Rio Verde,
onde existem gravadas nas Lages hieróglifos indecifráveis que as patas do meu cavalo
mouro frente aberta, pisotearam tantas vezes comigo no dorso, subindo e
descendo as suas encostas alcantiladas, abrigo de suçuaranas carniceiras que
das cavernas, em pleno dia, devassam invernadas e currais distantes,
premeditando uma sortida noturna a desoras.
A história de Pão de Açúcar
registra nomes de filhos ilustres, que projetaram sua terra no cenário de
outros povos como Bráulio Cavalcante, Jovino da Luz, Moreno Brandão, Freitas
Machado, químico de renome e do músico consagrado Manoel Bezerra Lima, etc.
E neste reencontro com os
meus conterrâneos à hora do crepúsculo, nada mais justo que reverenciar aqui a
memória dos que foram e exaltar os méritos dos que ainda aqui lutam pelo progresso
da terra dos nossos maiores.
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Transcrito do livro MONOGRAFIA DE
PÃO DE AÇÚCAR, de Aldemar de Mendonça.
*** ***
Fernando Maciel Mendonça. Foto: acervo de Aldemar de Mendonça.
FARNANDO
MACIEL MENDONÇA nasceu em Pão de Açúcar no dia 25 de março de 1913, filho de
Abílio de Carvalho Mendonça e América de Oliveira Maciel.
Deixando
Pão de Açúcar, entrou para o Exército, onde fez o 2º ano de Veterinária. Tomou
parte na Revolução Constitucionalista de 1932.
Após
nove anos de Exército, em virtude da decisão do Ministro Gal. Dutra, entrou no
“corte”, conseguindo entrar para a Força Aérea Brasileira em 1942.[ii] Entre 1944 e 1946,
trabalhou no Ministério da Agricultura.[iii]
Nas
suas andanças pelo Brasil, criou por Minas Gerais uma admiração muito grande,
casando-se com uma moça de Três Corações (Dolores Silva Mendonça), onde viu
nascer os filhos (Agenor, 26/01/1938; Ademar da Silva Mendonça, Abílio, Durval)
na mesma cidade em que nasceu Pelé.
Faleceu
no hospital José Alberto Maia, localizado em São Lourenço da Mata-PE, no dia 10
de maio de 1974.
Deixou
inédito um livro sobre veterinária, o qual mereceu elogios de quem o leu.
Esse
esboço biográfico tem por base o depoimento de Aldemar de Mendonça. Ao falar
sobre o irmão no seu livro, declarou que um dia, como estivesse muito ocupado
para fazer a crônica semanal para o “Jornal de Alagoas”, pediu para Fernando
escrever algo. Dentro de poucos minutos ele o entregou esse texto que ora
republicamos.
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NOTA:
Caro
leitor,
Deste
Blog, que tem como tema “HISTÓRIA E LITERATURA”, constam artigos repletos de
informações históricas relevantes. Essas postagens são o resultado de muita
pesquisa, em geral com farta documentação e dotadas da competente referência
bibliográfica. Por esta razão, solicitamos que, caso sejam do seu interesse
para utilização em qualquer trabalho, que delas faça uso tirando o maior
proveito possível, mas fazendo também o necessário registro de autoria e a
citação das referências. Isso é correto e justo.
Tratamento
de imagem: Vívia Amorim.
[i]
Gout-Rossignol é uma comuna no departamento de Dordonha, na Nouvelle-Aquitaine,
no sudoeste da França.
[ii]
Jornal do Comércio, RJ, 3 de maio de 1942.
[iii] Diário de Pernambuco, 15 de julho de 1944, nomeado Prático Rural, Classe “D”. Exonerado em 23 de julho de 1946.
Fiquei emocionado em ler tao bela declaração de carinho e amor pela terrra natal de Pao de Açucar. O texto é de um brilhantismo e sentimento extraordinário. . Obrigado Etevaldo por me propiciar a leitura deste texto que deve ser emoldurado e ser reverenciado como um hino a Pao de Açucar
ResponderExcluirObrigado, Carlos Frederico Machado! É um prazer tê-lo como leitor. Abraço!
ExcluirE parabéns Etevaldo por eternizar este texto
ResponderExcluir@euamopda meu blog e instagram !!! Parabéns pelo blog !!!!!! Domingo 18/05/2025 20:04h boa noite !!!
ResponderExcluirSou neto do autor, embora não tenha tido a oportunidade de conhecê-lo — nasci em maio de 1975, um ano após sua partida. Sou filho de Adhemar Mendonça e confesso que me emocionei profundamente ao ler este texto. Existe a possibilidade de acessar o livro completo, ainda que em versão manuscrita? Seria uma contribuição valiosa para os anais da medicina veterinária e, para mim, um legado familiar de imenso significado.
ResponderExcluirMe permita, Etevaldo, tomar a liberdade de falar sobre sua publicação de 18/05/2025, contendo um texto de Fernando Maciel de Mendonça, extraído de um livro de seu irmão, Aldemar de Mendonça, o Dema.
ResponderExcluirGostaria de tecer alguns comentários, complementar algumas informações e corrigir outras, embora eu próprio possa, aqui, cometer erros. A memória nos prega muitas peças.
Sou Abílio Silva de Mendonça, filho de Fernando e Dolores, sobrinho e afilhado de Dema.
1º) no sua matéria dá a entender que aquele texto de Fernando foi escrito em 1946, o que acho muito pouco provável. De 1946, sem dúvida, é a foto de João Lisboa, que ilustra o início do seu blog.
O mais provável é aquela matéria de Fernando, ter sido escrita na segunda metade da década de 1960, quando ele passou um período morando com Dema. Não consigo me lembrar de uma data mais precisa.
2º) nem todos aqueles citados filhos de Fernando nasceram em Três Corações. Lá, nasceram apenas Adhemar e Agenor. Durval e Antônio nasceram em Ouro Fino, também no sul de Minas Gerais. Eu, Abílio, nasci em Pinheiral-RJ, na época distrito de Piraí, embora muito mais perto - e bote perto nisso, de Volta Redonda. Ainda teve América, nascida em Conselheiro Lafaiete e Segismundo que nasceu em Pão de Açúcar. E entre América e Abílio, teve Marly Penha, também nascida no Rio de Janeiro, mas que faleceu aos 2 anos de idade.
3º) não sei explicitar quando Fernando ingressou no Ministério da Agricultura. Pode ter sido em 1944, como indicado em um trecho, embora eu acredite que foi antes. Mas, com certeza, não ficou ali só até 1946 e tampouco foi simplesmente exonerado. Foi exonerado de suas funções de chefe de Posto Veterinário, do DPA - Departamento de Produção Animal, função que exerceu durante toda vida (ou quase toda), para ser aposentado, após sofrer um AVC. Isso só se deu na década de 1960. Inclusive, no início daquela década, ele era o responsável pelo posto de Escada-PE. Aquele foi seu primeiro AVC.
(Sendo muito longo meu comentário, tive que dividi-lo e duas partes. Continua…
…Continuação
ResponderExcluir4º) sobre o livro de veterinária que escreveu, enviou cópias dos originais para a editora do exército, editora Globo e editora José Olympio. As três responderam com elogios ao livro e querendo publicá-lo.
Entretanto, em consequência do AVC, perdeu um pouco sua capacidade de raciocínio. E eu presenciei ele destruir várias páginas do original.
Por isso, esse livro embora bastante elogiado, nunca foi além dos originais datilografados.
Uma vez aposentado, meu pai resolveu fazer o que sempre gostou: andar pelo interior, em contato com a natureza, admirando flora e fauna e matando a sede com água fresca que brotava nas encostas das montanhas mineiras. Certamente ele era um ecologista, embora esse termo não fosse conhecido na época.
Fiz muitas caminhadas em sua companhia, quando ele ia trabalhar em alguma fazenda. Lhe dei muito trabalho pra me carregar, quando eu ainda era muito pequeno. Para pernas tão curtas, era difícil vencer as distâncias.
Numa de suas empreitadas, comprou uma canoa (a remo) e partiu de Pirapora-MG para descer o Rio São Francisco até sua foz, de alguma forma contornando os trechos não navegáveis. Isso sozinho e sem muito poder contar com o braço esquerdo.
Esse sonho acabou 319km adiante, em Januária-MG, por conta de um segundo AVC.
Em 1974, um terceiro AVC, em conluio com um infarto, acabou com todo e qualquer outro sonho que ainda pudesse ter.
Numa opinião pessoal, ele se sentia muito bem em três lugares: no sul de Minas, no curso do São Francisco e em Pão de Açúcar. Cidade que ele amava, muito mais que qualquer um possa imaginar. Seus próprios conterrâneos não sabem o carinho que tinha por sua terra. Onde ele estivesse, em Minas, no Rio de Janeiro ou em Pernambuco, sempre escrevia alguma coisa para algum jornal local, enaltecendo as coisas de sua terra. Falava do São Francisco e suas canoas de tolda, do morro do Cavalete, da Pedra da Paciência e do Parujé. Não se contentava em falar de Jaciobá só para os jaciobenses e alagoanos. Isso Dema faziam muito bem não deixando sua gente esquecer sua história e tradição. Fernando sempre procurava fazer com que Pão de Açúcar fosse conhecida além das alagoas. E quem mais, além dele, tinha talento, interesse, e oportunidade pra fazer isso?
Como herança, meu pai não me deixou bens materiais. Dele, herdei o espírito de aventura, o gosto pela natureza e, embora nascido em Pinheiral-RJ e há décadas morando em Pernambuco, a admiração por Minas Gerais e por Pão de Açúcar. Com o rio São Francisco, o Morro do Cavalete, a Pedra da Paciência e o Parujé.